O Natal costuma ser apresentado às crianças como um território de luz: árvore enfeitada, mesa cheia, riso alto, família reunida. Mas para muitas delas, especialmente neste ano marcado por violências, perdas abruptas e histórias interrompidas cedo demais, dezembro também chega carregando silêncio, ausência e perguntas sem resposta. Em Mato Grosso do Sul, os números de feminicídio escancaram uma realidade dura: muitas das mulheres assassinadas eram mães. Algumas crianças perderam a referência mais básica de cuidado. Outras, além da perda, presenciaram agressões, cenas de violência ou cresceram cercadas por segredos e versões incompletas da verdade. E há ainda aquelas que perderam pais, avós, irmãos, amigos, mortes que não ganham estatísticas, mas deixam marcas profundas. Existe uma frase que costuma surgir nesses contextos como uma tentativa apressada de consolo: “criança supera mais fácil”. Para a psicóloga especialista em luto Raissa Ferreira (CRP 14/048277), essa ideia ignora algo fundamental. “As crianças são indivíduos que também têm sentimentos profundos, fazem reflexões e carregam traumas. Não é que superem mais facilmente, mas têm menos amarras, menos resistências e por isso podem lidar de forma mais rápida, desde que assistidas e amparadas corretamente.” Ou seja: não é força. É vulnerabilidade acompanhada, ou não. O que a criança entende quando alguém morre A forma como uma criança compreende a morte não nasce do nada. Ela é construída dentro de casa. “A criança entende conforme a família comunica sobre suas crenças e sobre o ciclo da vida”, explica Raissa. Esse entendimento muda com a idade, mas, sobretudo, com o espaço que é dado para que o tema exista. “Uma criança de 2 anos já é capaz de identificar, de maneira simplista, a diferença entre vivo e morto, através de insetos, plantas e animais, desde que isso seja explicado.” Quando adultos evitam o assunto “para proteger”, o efeito costuma ser o oposto do desejado. “Ela sente a perda, a saudade, a falta, porém não consegue nomear, digerir ou simbolizar. Ela sofre numa espécie de beco sem saída.” Esse silêncio cobra um preço. Crianças que não encontram espaço para expressar tristeza, raiva ou confusão podem manifestar a dor de outras formas. “Pode evoluir com prejuízos emocionais, como depressão, mas também através de doenças psicossomáticas, como dores de cabeça, de barriga, atraso escolar, regressão do sono, enurese noturna.” Nem sempre o luto aparece como choro quieto. Às vezes vem como agitação, birra, agressividade. “Em crianças, pode gerar uma espécie de depressão agitada, em que não se vê a prostração, mas sim comportamento explosivo.” Quando a perda é violenta, o luto também muda Nos casos de feminicídio e outras mortes violentas, o impacto costuma ser ainda mais profundo. “Perdas violentas tendem a gerar lutos complicados (patológicos)”, explica Raissa. O trauma se soma à perda, junto com sentimentos ambivalentes, segredos, falta de informações claras e estigma social. Quando a criança presencia a violência ou tem acesso a detalhes do que aconteceu, o efeito pode ser devastador. “São componentes traumatizantes que podem alterar recursos importantes no desenvolvimento da criança. Há um contato com um conteúdo com o qual ela não tem estrutura para lidar.” Luto e trauma se sobrepõem. “A perda em si já tem potencial traumatizante, mas quando ela é violenta é bem provável que a criança precise de defesas importantes no seu psiquismo para se proteger do ocorrido, portanto pode fazer sintomas graves na tentativa de elaborar tanta descarga negativa.” Por que o Natal dói mais Datas comemorativas intensificam o sofrimento porque carregam expectativas sociais rígidas. “Há uma expectativa clara de felicidade, união familiar e rituais determinados. O Natal dá destaque para situações que já estavam ocorrendo, porém sem tanta atenção.” Para a criança enlutada, o que machuca mais nem sempre é a ausência em si, mas o que não se fala sobre ela. “O silêncio, a falta de explicação, as dúvidas, os segredos podem ser mais traumatizantes do que a própria perda. O desamparo e a solidão diante da dor são avassaladores.” Manter rituais pode ser saudável, desde que não seja uma encenação de normalidade. Não existe receita pronta. O ideal é perguntar à criança o que ela gostaria de fazer, mas também oferecer saídas. E, se houver celebração, não fingir que nada aconteceu”, explica a psicanalista Raissa Ferreira. A coragem que o adulto precisa ter A maior tarefa dos adultos diante do luto infantil não é proteger da dor, mas caminhar junto nela. “Dar espaço para que a criança possa falar sobre a dor dela. Conversar sobre a pessoa que se foi, relembrar coisas, não permitir que a perda se torne um assunto proibido.” Falar a verdade é essencial. Sempre. “O que não pode ser dito são os eufemismos bem intencionados que misturam simbologias e embaralham a cabeça das crianças: ‘está dormindo’, ‘foi viajar’, ‘virou estrelinha’.” E sim, adultos podem chorar. “Chorar na frente da criança pode ajudar.” Mas com um limite claro: “Crianças não podem ser suporte emocional de adultos.” Se há uma mensagem final para este Natal, Raissa resume com delicadeza: “Encontrar uma forma de honrar e relembrar quem se foi junto à criança. Um pequeno ritual, uma conversa, uma cartinha. Não deixar passar em branco, mas não fazer todo o evento em torno da perda.” Porque criança sente, lembra, sofre. E, quando acolhida, também encontra caminhos para seguir vivendo, sem precisar ser de ferro. E quem precisar de acolhimento, pode entrar em contato a psicóloga aqui. Acompanhe o Lado B no Instagram @ladobcgoficial , Facebook e Twitter . Tem pauta para sugerir? Mande nas redes sociais ou no Direto das Ruas através do WhatsApp (67) 99669-9563 (chame aqui) . 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