A poética de Carlos Drummond de Andrade
Profa. Dra. Maria de Fátima Gonçalves Lima
- A POESIA DE 30
Drummond pertence ao segundo tempo do Modernismo brasileiro, fase que amadurece as propostas de 22, através da criação de uma expressão verdadeiramente brasileira, sem deixar de ser universal. Ou melhor, essa fase integra sabiamente nossa expressão poética ao sistema contemporâneo ocidental. Abranda-se o entusiasmo por nossas particularidades exóticas de país tropical. O Brasil passa a ser encarado como uma parcela do Ocidente, o que, de fato, coincide com nossa condição de povo formado sob o influxo dominante da civilização europeia. Não são esquecidas as influências da cultura negra, mas sente-se mais o peso do Capitalismo, do Marxismo, do Existencialismo e da Psicanálise. Além da voz dominante de Drummond, participaram desse processo poetas como Murilo Mendes, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Jorge de Lima, entre outros.
- A ANTOLOGIA POÉTICA DRUMMOND
A Antologia Poética de Drummond contém os dez melhores livros da poesia desse poeta maior. Foi editado pela primeira vez, com o título de Reunião, em 1969, pela livraria José Olympio Editora, quando poeta tinha 67 anos. O título Reuniãoe o próprio volume foram concebidos provisoriamente, porque o poeta pretendia ampliar o volume e alterar o título à medida que fosse escrevendo novos livros. Isso vinha acontecendo sistematicamente com as edições conjuntas de suas poesias e tornou a acontecer em 1983, quando Reunião foi acrescida de nove livros e reeditado com o nome de Nova Reunião– Nove livros de Poesia, e posteriormente o subtítulo denominado Dez Livros de Poesia: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José (1942), A Rosa do Povo (1945), Novos Poemas (1948), Claro Enigma (1951), Fazendeiros do Ar (1954), A Vida Passada a Limpo (1959) e Lição de Coisas (1962).
Ao organizar a sua Antologia Poética, em 1962, Drummond optou por apresentá-la em certos núcleos temáticos, que seriam, segundo suas próprias palavras, “certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto. A Antologia lhe pareceu assim mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais fiel. Escolhidos e agrupados os poemas sob esse critério, resultou uma Antologia que não segue a divisão por livros nem obedece a cronologia rigorosa”. (Op. cit. ANDRADE C. D. (2002) p. 17). Desta forma, o autor ainda afirma que não selecionou os poemas pela “qualidade nem pelas fases que acaso se observam em sua carreira poética. Cuidou antes de localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que acondicionam e definem, em conjunto”. (ANDRADE C. D. (2002) p. 17).
Os temas e as respectivas seções são os seguintes: O indivíduo (Um eu todo retorcido), a terra natal (Uma província: esta), a família (A família que me dei), amigos (Cantar de amigos), o choque social (Na praça de convites), o conhecimento amoroso (Amar-amaro), a própria poesia (Poesia contemplada), exercícios lúdicos (Uma, duas argolinhas), uma visão, ou tentativa de exploração e de interpretação da existência (Tentativa de exploração e interpretação do estar-no-mundo), outros temas (Suplemento).
Não é difícil perceber que todos esses temas estão estreitamente interligados. O indivíduo surge de uma família numa terra qualquer. Cresce. Faz amigos e frequenta a praça, onde amplia suas relações e conhece a política e o amor. Então, descobre a poesia, na qual tanto se adestra que chega a brincar com as palavras e compõe opinião sobre as coisas, o mundo e a existência.
Como se vê, os oito últimos temas da Antologia Poética de Carlos Drummond de Andradenão passam de variações ou projeções do primeiro – o indivíduo. Assim, deve ser lida como uma espécie de unipoema, no qual se condensa uma das grandes biografias espirituais deste século, a do mineiro Carlos Drummond de Andrade.
2.1. Um eu todo retorcido
A poesia é a arte que se manifesta pela palavra e o seu objeto é o reino mágico e infinito do espírito. A poesia é a comunicação, a expressão do “eu” do artista por meio do signo literário, isto é, da palavra plurissignificante e da metáfora. Através deste “eu” o poeta vê o mundo e simultaneamente volta para si próprio, numa atitude contemplativa e filosófica. Porém, o filósofo contempla o mundo exterior, ideias gerais, objetivas, universais. Contempla também o mundo interior, ideias particulares, subjetivas, dentro dos seus limites pessoais. No entanto, paradoxalmente, ao contemplar o próprio reino, o poeta descobre o mundo inteiro.
O artista da palavra dirige-se, pois, para dentro de seu mundo interior, à procura daquilo que o revela, enquanto ser dotado de fantasia criadora e vivências. Porém, no reflexo da própria imagem, o poeta vê o sentimento do mundo refletido nas águas da vida. Desta forma, os mundos subjetivos e objetivo aderem-se, imbricam-se, formando uma só entidade subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, retratando a vida, com a predominância do primeiro. A poesia é a revelação espiritual da vida, revela o mundo e cria outro, o poético.
A poética de Carlos Drummond de Andrade exercita esse imbricamento entre os mundos subjetivos e objetivo, entre o “eu” e o mundo exterior. No entanto, logo nas primeiras obras pode ser observado um conflito entre o eu versus o mundo. Ao contemplar as águas da vida, viu imagens de um indivíduo desajustado, marginalizado, à esquerda dos acontecimentos, portanto um gauche: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. (Idem p. 21). Gauche é um adjetivo francês que, no caso, significa “sem jeito”, de esquerda, às avessas, tímido; é também postura peculiar ao poeta em face de si e do mundo. Caracteriza ainda o contínuo desajustamento entre a sua realidade e realidade exterior. Há uma crise entre sujeito e objeto que, ao invés de interagirem e se completarem, terminam por se opor conflituosamente.
O “Poema de Sete Faces” (Idem p. 21) abre Alguma Poesia(1930), a primeira obra publicada de Drummond. Neste poema o tema do gauchismo é apresentado pela primeira vez e contém uma síntese de vários aspectos que caracterizarão a obra do autor no futuro. O poema apresenta sete estrofes que, aparentemente, nada têm a ver em si. Porém, sete é um número mágico, alquímico, simboliza, entre outras coisas, a arte e a perfeição.
Por meio das “sete faces” /estrofes, o poeta exprime sua solidão ante as coisas e as pessoas que o cercam. Fora de si mesmo a realidade nada lhe diz senão que está sozinho com sua timidez e sua falta de jeito para viver, que lhe veio de nascença. Não fosse a inquietação dos homens, a vida seria mais bela. De súbito, o poeta faz um comovido apelo a Deus, nascido da consciência da sua própria fraqueza. Diante dela o mundo lhe parece vasto e o “eu” poético não vê a possibilidade de se fazer entender, mesmo apelando ironicamente para uma rima como solução. No entanto, ele sabe que vasto também é o sentimento que carrega em seu coração. Para contê-lo, apela para um recurso típico da sua maneira de ser, na última estrofe, atribuindo sua emoção à bebida e a beleza da lua.
O gauchismo do “eu” lírico é anunciado por “Um Anjo Torto”: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”(Idem p. 21). Os anjos são comuns nas histórias religiosas, como é o caso do anjo Gabriel, que ordena a José que fuja de Jerusalém com o menino Jesus. Os anjos bíblicos, geralmente, são bons, prenunciam coisas boas e auxiliam as pessoas a encontrar melhor caminho; enfim, são anjos de luz, numa primeira leitura da possibilidade sêmica do texto. O anjo que aparece ao “eu” lírico é o contrário da imagem religiosa: é “torto”, vive “na sombra”, tem um olhar incerto, expressão enigmática e irônica. É um anjo barroco, como aqueles das igrejas mineiras, marcados por mistérios, contradições e linhas que oscilam entre o bem e o mal. É esta figura cheia de estranhamento que prediz o futuro gauche do poeta e, é este o momento que a arte adquire forma, voz, ação e revela suas sete faces ao grande poeta Carlos Drummond de Andrade.
Fazendo uma interpretação simples, poderíamos dizer que o “eu lírico”, diante do sombrio anúncio, vê o mundo vazio e superficial e as relações humanas parecem ser mediadas apenas pelo desejo: “As casas espiam os homens/ que correm atrás de mulheres. / À tarde talvez fosse azul, / não houvesse tantos desejos” (Idem p. 21). Porém, foi por meio do verbo anunciado que o nosso artista descobriu a palavra poética e seguiu seu caminho de sons, vocábulos, imagens, alquimia e a marca do humano. A partir instante descoberta do poético, o artista da palavra fez da rima, não uma solução, mas uma ponte entre o homem e sua própria humanidade perdida na falta de sensibilidade e arrogância.
Drummond traz na alma os sentimentos deste mundo que é mais gauche do que o escritor. Este artista, apesar de demonstrar um aparente “orgulho” e introspecção, traduziu sempre o sentimento mais nobre que existe no mundo: o amor ao próximo e fez de sua poesia a sua vitória verbal, ao explanar nas sete faces da palavra poética, todo o lirismo que o mundo precisava possuir.
Este sentimento de solidariedade do autor se estende ao homem do povo chamado “José” (Idem p. 30). Esse personagem pode ser uma encarnação do próprio poeta, mas também a do ser humano, do seu semelhante, que sofre todas as dificuldades e decepções desta vida, mas continua a viver com obstinação, apesar de não ter nenhuma perspectiva, nem mesmo para onde ir: “E agora, José? /A festa acabou, /a luz apagou, /o povo sumiu, / a noite esfriou, /e agora, José? /e agora, você? /você que é sem nome, /que zomba dos outros, /você que faz versos, /que ama, protesta? /e agora, José?” (Idem p. 30).
José é mais gauche do que Carlos, ou qualquer outro gauche poetizado por Drummond. É uma invenção mais apurada. No Carlos, do poema do “Poema de Sete Faces”, o poeta se reconhece como gêmeo, mas José está a meio caminho entre ele e o leitor. O “eu” de José é ainda mais retorcido, mais gauche, mais torto, mais sombrio do que o de Carlos. Principalmente, José não tem lastro familiar, não tem sobrenome, não sabe de onde veio nem para onde vai. Tem a chave na mão, mas não existe porta. Quer voltar ao passado, mas o passado secou. Suas alternativas não passam de hipóteses seguidas de reticências, de vazios, do nada. Até a morte lhe é estranha. José é a essência do ser aporético, que não encontra saída nenhuma na vida. É o chamado zero à esquerda, pessoa sem valor, sem nada, niilizado, símbolo de uma era de massificação, época de objetos e de não sujeitos.
José surge em 1942, como parte de Poesias. O poema que dá título ao livro, sintetiza as preocupações básicas do poeta neste momento: a consciência de seu ser-no-mundo e o questionamento do sentido da existência humana.
Através da luta com as palavras, Drummond busca expressar essa conexão eu-mundo. Relação ainda bastante conflitiva, fruto da autonegação, da solidão que invade o artista da palavra, culminando na necessidade de adoção da máscara, José, a persona, por meio de quem fala o ser qualquer.
José é um livro em que o “eu” lírico, desencantado, percebe a sua solidão e a falta de perspectiva que o grande mundo o oferece. O poema “A Bruxa” (Idem p. 28) expõe esse momento de conscientização da solidão do homem no quarto, na América, no mundo: “Nesta cidade do Rio, / de dois milhões de habitantes, / estou sozinho no quarto, / estou sozinho na América. // Estarei mesmo sozinho?/ Ainda há pouco um ruído/ anunciou vida a meu lado. / Certo não é vida humana, / mas é vida. E sinto a bruxa/ presa na zona de luz” (Idem p. 28).
A tomada de consciência da própria condição de solitário leva a construção de um desejo de poetizar sobre a vida, naquilo que ela oferece não de pior, mas de prazer. Daí a necessidade de encontrar um amigo que seja leitor de Horácio, que saiba viver secretamente os prazeres da vida e ser, principalmente, amigo.
Porém, a realidade é um grande beco sem saída, é uma noite de confidências assustadoras, de vozes que ressoam como os gritos da bruxa a atordoar a paz, esperança de ter as mãos dadas com o companheiro e ter fé no futuro. O “eu” lírico é um “José” sem festa, sem minas, sem ouro, sem crença e amigo, um eu todo retorcido marcado por profunda angústia e solidão.
O poema de Drummond é uma flor, uma vida que se contrapõe à náusea da esterilidade dos seres insensíveis e sem essência. “A flor e a Náusea” (Idem p. 36) traduz uma forte carga existencialista.
O existencialismo é uma variante da temática social do livro A Rosa do Povo(1945). As inquietações existenciais de Drummond possuem fortes conexões com o cotidiano da grande cidade, mas também com o passado do poeta. Minas, a família, as ligações afetivas formam a rede sutil dos elementos que lhe fornecem a matéria – prima de suas investigações existenciais, em cujos extremos se localizam dois grandes mistérios, mediados pelo amor – que é sempre amar. A expressão da crise do indivíduo em face de um mundo também todo retorcido é evidenciado em “A flor e Náusea” Idem p. 36): “Preso à minha classe e a algumas roupas, /vou de branco pela rua cinzenta. /Melancolias, mercadorias espreitam-me./Devo seguir até o enjoo?/Posso, sem armas, revoltar-me?//Olhos sujos no relógio da torre:/Não, o tempo não chegou de completa justiça. /O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo podre, o poeta podre/fundem-se no mesmo impasse”. (Idem p. 36)
“A Flor e a Náusea” trazem um olhar reflexivo sobre a própria natureza do poético e a sua função social, por meio de metáforas. Tal reflexão exala perfume e náusea ao mesmo tempo, faz apologia à paz, fala da guerra e dos horrores da humanidade, ressaltando o branco, em oposição ao cinza, para expressar as contradições e dificuldades que a poesia social diariamente enfrenta.
Assim, “A Flor e a Náusea”, flor-poesia, revela a consciência da limitação do poema chamado social e considerado, por muitos, como “poema sujo”, “poesia impura” ou “antipoesia”. A flor-poesia é mal-vista, é considerada maldita, marginal:“nasceu na rua, no asfalto, não possui cor e nem pétalas, sua cor não se percebe. / Suas pétalas não se abrem. / seu nome não está nos livros. / É feia. Mas é realmente uma flor/” (Idem p. 37). Uma flor-poesia-revolução.
A função da arte poética como “Rosa do Povo”, como a poesia que fala do povo, é marcada por dificuldades, por caminhos espinhosos e vida severina. João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, assim poetizou sobre a poesia dita social: “É difícil defender, / só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é / esta que se vê, severina”.(NETO, J. C. M. (1980) p. 112). De fato, é nauseante a ideia de que o poeta pode até defender ou denunciar os problemas da carência humana, mas não pode resolvê-los de forma prática.
Esta circunstância de impotência diante dos problemas da vida provoca enjoo e revolta num poeta que tem dentro de si, um coração maior que o mundo e todos os sentimentos dos homens. Sua vontade é dar um grito de paz através da sua rosa. Este ato é coerente para quem escreveu dizendo “Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918 chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvo / e dou a poucos uma esperança mínima”. (Idem p. 37).
Nesses versos, de “A Flor e a Náusea”, Drummond depõe sobre um curioso episódio de sua vida que, graças a um incidente com um professor de Português, ele seria expulso do colégio Anchieta, em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Tinha Drummond seus 17 anos e nesta ocasião foi acusado de insubordinação mental e anarquista. O jovem, denominado revolucionário, tornou-se um dos maiores poetas da língua portuguesa e o professor de português ficou na história marcado por sua incoerência e insensatez, por sua visão retorcida sobre a educação e sobre o homem.
- Uma Província: Esta
A terra natal, em Drummond, não é apenas a sua Itabira de Mato Dentro – berço do poeta – mas as Minas Gerais com suas cidades históricas, seus espíritos, personagens e cultura. No poema “Prece do Mineiro no Rio” (Idem p. 78).
Carlos Drummond de Andrade realiza essa transfiguração da Terra Natal, em matéria poética: “Espírito de Minas me visita, / e sobre a confusão desta cidade, onde voz e buzina se confundem, / lança teu claro raio ordenador. / Conserva em mim ao menos a metade/ do que eu fui de nascença e a vida esgarça” (Idem p. 78). A vida é a maior fonte de inspiração para este poeta de alma e ofício. Por meio da leitura de todos os mundos, o poema surge poderoso. Sua terra e sua gente foram os primeiros mundos observados. Por isso, a família é antes de tudo tema de sua poesia: desde a figura paterna, passando pela mãe, irmãos, tios e até a preta velha chamada Maria. De sua terra e família nasce o coração maior que o mundo e toda a força evocativa de sentimento, de harmonia e de humanismo compõem essa poética do tempo presente e dos homens presentes.
Nos oito poemas que compõem essa seção, Carlos Drummond de Andrade percorre o “selo de Minas” colado em sua poética e marcando o seu jeito de ver o mundo, de sentir as coisas, de se colocar na vida: “Cidadezinha qualquer” (Idem p. 63), “Romaria” (Idem p. 64), “Confidências do Itabirano” (Idem p. 66), “Evocação Mariana” (Idem p. 67), “Canção da Moça – Fantasma de Belo Horizonte” (Idem p. 68), “Morte de Neco Andrade” (Idem p. 72), “Estampas de Vila Rica” (Idem p. 72), “Prece de Mineiro no Rio” (Idem p. 78).
Através de sua viagem poética, Drummond descreve cubisticamente a história de sua terra natal: a monotonia das cidadezinhas, as festas religiosas, as igrejas, seus anjos tortos, as minas, as estradas de ferro, cidades e suas histórias, os personagens e os fatos que vivenciou ou assistiu, o gado das Minas e do tempo confidenciado no canto de um itabirano: “Alguns anos vivi em Itabira. /Principalmente nasci em Itabira. /Por isso estou triste, orgulhoso: de ferro. /Noventa por cento de ferro nas calçadas. /Oitenta por cento de ferro nas almas. /E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.” (Idem p. 66)
“Confidência do Itabirano” (Idem p.66), a partir do título, já exprime a intenção do autor: falar de sua cidade de origem, que tanto o marcou, e cuja lembrança continua presente em sua vida como uma fotografia na parede.
A herança itabirana é presentificada não só nos objetos que o cercam, mas na sua maneira de ser – a tristeza, o orgulho, o hábito de sofrer – que atribui ao fato de haver nascido e vivido naquele ambiente.
A doce herança itabirana é marcante na obra drummondiana. Livros como Brejo das Almas, Confissões de Minas, Sentimentos do Mundo, Boitempo, Menino Antigo e Esquecer para Lembrar revelam sentimentos para com a terra natal, revolvem o passado na tentativa, talvez, de compreender a sua condição no mundo como homem e como poeta.
Foi através da leitura que o jovem poeta adquiriu informações e desenvolveu reflexões críticas sobre a realidade. Algumas leituras foram decisivas para a formação do Carlos poeta que, de sua Itabira do Mato Dentro, observava o cosmopolitismo da cidade grande ou dos países em evidência. Daí a ironia ao seu mundo interior revelado por “um anjo torto / desses que vivem nas sombras” da timidez e, talvez como o próprio poeta, também um gauche provinciano “sequestrado pela vida besta”, como certa vez observou Mário de Andrade.
É nesse ponto que podemos compreender a veia irônica marcante do poema “Cidadezinha Qualquer” (Idem p. 63), inserido pelo poeta em “Uma Província: Esta” e publicado em Alguma Poesia.
“Cidadezinha Qualquer” (Idem p. 63) é o retrato descritivo da monotonia, da mesmice, da rotina sem perdão das cidades interioranas. É o reflexo de um mundo excêntrico, longe dos grandes centros cosmopolitas. Por isso, o substantivo cidade, no diminutivo, ganha uma carga semântica de inferioridade e pequenez enfatizada ainda pela adjetivação qualquer: isto porque é uma cidadezinha comum, reles, sem qualidades, sem determinação e nem perspectiva, perdida nas Minas Gerais da vida.
Nesse lugar, de “casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras”, fora dos grandes centros, tudo vai reiteradamente devagar: homem, cachorro, burro, coisas, tudo sequestrado por uma vida besta. Essa mansidão faz parar o tempo, o ar e a pontuação: metaforizada já na primeira estrofe do poema, o que pode ser verificada no caos da falta de vírgulas a sugerir um lugar sem lei, sem homem e sem Deus.
“Cidadezinha Qualquer” exprime um espaço solto na existência, uma ausência de ordem e de um mundo primitivo, sem planejamento, que pode ser resumido por meio da locução adverbial “ao deus-dará” que significa à toa, sem governo próprio, descuidado, a reboque, a esmo, ao acaso, devagar, sem visão, ausente do mapa, abandonada, vaziada de ação e movimento.
- A família que me dei
Carlos Drummond de Andrade é um Poeta Maior e, como tal, trabalha temas metafísicos ou políticos, portanto universais. Dessa forma, a família que surge em seus poemas não é necessariamente aquela que ele teve, num memorialismo subjetivo, mas aquela que o tempo, depois de passado, permite conquistar.
Essa família que agora aparece é a representação da vida transformada em matéria de poesia. O “eu” poético que aparece nos textos é uma transfiguração das experiências vividas pelo próprio poeta, mas que traduzem os sentimentos do mundo também. “Retrato de família” (p. 83), “Os bens e o sangue” (Idem p. 86), “infância” (Idem p. 93), “Viagem na família” (Idem p. 94), “Convívio” (Idem p. 98), “Perguntas” (Idem p. 99), “Carta” (Idem p. 102), “A mesa” (Idem p. 104), “Ser” (Idem p. 116) e “A Luís Maurício, infante” (Idem p. 117) são os poemas escolhidos para essa seção que é um abrir de baús / e de lembranças violentas (Idem p. 94), uma “viagem na família” através do poético.
Por intermédio da poesia o “eu” lírico descobre a sua história e compreende o valor da vida. Essa descoberta não é piegas, sentimental, ao contrário, é metafísica e, às vezes, intolerável para o poeta que sente o desejo de abafar o insuportável mau cheiro da memória, como no poema “Resíduo” (Idem p. 320).
Outras vezes, reconhece a dimensão da exemplaridade que este passado tem em sua vida e em sua poesia, como nos poemas “A Mesa” (Idem p. 104) e “Os Bens e o Sangue” (Idem p. 86). No primeiro, surge a vontade louca de recuperar um tempo perdido para sempre: “E não gostavas de festas… / Ó velho, que festa grande / hoje te faria a gente. / E teus filhos que não bebem / e o que gosta de beber, / em torno da mesa larga, / largavam as tristes dietas, / esqueciam seus fricotes, / e tudo era farra honesta / acabando em confidência” (Idem p. 104). No último, podemos observar a voz dos laços familiares que evoca este poeta cantando: “– Ó meu, ó nosso filho de cem anos depois, / que não sabes viver nem conheces os bois/pelos seus nomes tradicionais… nem suas cores/marcadas em padrões eternos desde o Egito”. (p. 92)
A corrente familiar torna-se uma cadeia insuperável e, a despeito das diferenças, está selado pelas leis reunidas num código especial onde predominam “Os bens e o sangue” (Idem p.86). Pela voz dos parentes visitados, negados e nunca esquecidos, ganha som da sentença definitiva dos laços de família.
Os sentimentos se alteram de forma insensata expulsando a possibilidade de qualquer visão mais enfeitada do que pode ter sido a convivência. Viajando através da memória na história da família o “eu” poético reflete: “No deserto de Itabira/a sombra de meu pai/tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido. /Porém nada dizia. /Não era dia nem noite. /Suspiro? Vôo de pássaro? /Porém nada dizia. (Idem p. 94).
O poema “Viagem na Família” (Idem p. 94) é a descrição de uma “viagem patética” que empreende sempre guiado pela misteriosa figura do pai, levando-o como uma muda imagem virgiliana pelo espaço antigo, onde há mortos amontoados, casas em ruínas, ruas, relógios e baús. “No deserto de Itabira/ a sombra de meu pai tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido. / Porém nada dizia. / Não era dia nem noite. /Suspiro? Voo de pássaro? Porém nada dizia. // No deserto de Itabira/a sombra de meu pai /tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido. / Porém nada dizia. /Não era dia nem noite. /Suspiro? Voo de pássaro/ Porém nada dizia”.
Pisando livros e cartas, lá vão os dois, o filho angustiado indagando, o pai silencioso sugerindo mudamente a necessidade de tais roteiros. “Longamente caminhamos. /Aqui havia uma casa. / A montanha era maior. /Tantos mortos amontoados, / o tempo roendo os mortos. /E nas casas em ruína, /desprezo frio, humildade. /Porém nada dizia. […] Pisando livros e cartas, / viajamos na família. Casamentos; hipotecas; os primos tuberculosos; a tia louca; minha avó /traída com as escravas, / rangendo sedas na alcova. / Porém nada dizia”.
A viagem na família apresenta muitos momentos, ora lirismo, recordação marcada por saudades, ora ressentimento: “Vi mágoa, incompreensão/ e mais de uma velha revolta/ a dividir-nos no escuro. / A mão que eu não quis beijar, / o prato que me negaram, / recusa em pedir perdão. / Orgulho. Terror noturno. / Porém nada dizia”.
Drummond de Andrade é um indivíduo que sente e (re)-sente a vida e se recria através da memória. O poeta tenta recuperar o tempo passado, vencer a distância que o separa das terras mineiras e da história de sua família, à medida que percebe que o passado se torna presente, através da herança legada pelos bens e sangue. Carlos Drummond assume a captura do passado que, posteriormente, será desvendado com mais ousadia em Boitempo – Boitempo & A Falta que Ama, Menino Antigo e Esquecer para Lembrar. Nestas obras, voltam às reminiscências da infância e juventude, de sua cidadezinha, dos tempos de colégio, dos primeiros anos em Belo Horizonte.
Nessa seção “A família que me dei”, a construção dessa família é formada por antepassados, imagens reais e fictícias do poeta e, também, personagens desejados como pode ser observado no poema “Ser” (Idem p. 116) que canta em versos um filho inexistente: “O filho que não fiz. /hoje seria homem. /Ele corre na brisa. /sem carne, sem nome. /Às vezes o encontro/num encontro de nuvem. /Apoia em meu ombro/seu ombro nenhum.”(Idem p. 116)
O poema “Ser” enfatiza a sensação de vazio e a impotência diante de certos sonhos. A referência a essa criança não nascida faz pensar em seu primeiro filho, Carlos Flávio, morto momentos após o nascimento, levando o poeta a assinalar anos depois: “Interrogo meu filho, / objetos de ar:/ em que gruta ou concha/ quedas abstratas?” (Idem p. 116).
Esta dor profunda e sentimento de perda foram também matéria de poesia em “O que viveu meia hora” do livro A paixão medida. A imagem da sua paixão sem medida – sua filha Maria Julieta é referida no poema “A mesa” (Idem p. 104) sob as linhas da ternura maior do sentimento de um afeto absoluto, de um pai que morreu apaixonado por essa filha. Na bela passagem deste poema a figura de Julieta ainda menina é pura poesia: “Repara um pouquinho nesta, / no queixo, no olhar, no gesto, / e na consciência profunda/ e na graça menineira, / e dize, depois de tudo, / se não é, entre meus erros, / uma imprevista verdade. / Esta é minha explicação, / meu verso melhor ou único, / meu tudo enchendo meu nada” (Idem p. 112/113). Maria Julieta foi tudo na vida do pai, preencheu os insistentes vazios que seu lado gauche teimava em enfatizar.
Drummond foi um leitor e fazia suas viagens-pela-leitura, para conhecer o mundo e, também, para fugir da “chateação” da terra natal, e por isso dela se afastava para poder colonizar o seu sonho. Carlos Drummond mergulhava em sua viagem-pela-leitura, em sua “dificílima dangerosíssima viagem / de si a si mesmo: / pôr o pé no chão / do seu coração / experimentar / colonizar / civilizar / humanizar / o homem/ descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas/ a perene, insuspeitada alegria/ de com-viver”, como cantou nos versos de “O Homem; As Viagens”, (ANDRADE, 2002, 718) poema inserido no livro As Impurezas do Branco.
Através da leitura o jovem artista descobria o mundo e seus significados, visitava lugares inimagináveis, inventava outros mundos. Harold Bloom em Como e por que ler afirma que para ler bem é preciso ser inventor. (Bloom, H. (2001) p. 18). Drummond foi um grande leitor e inventor e, mais tarde diria, como epígrafe do livro O Corpo (1984) “O problema não é inventar: É ser inventada hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”. (ANDRADE, 2002, p. 1230).
O tema de Robinson Crusoé e da ilha aparece várias vezes na poesia e na prosa de Drummond. Em “Infância”, o “eu” poético descreve seu pai indo e vindo, as negras, o café, a mãe, o irmão mais novos e se põe apartado de todos contemplativamente: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. /Minha mãe ficava sentada cosendo. /Meu irmão pequeno dormia. /Eu sozinho menino entre mangueiras/lia história de Robinson Crusoé/comprida história que não acabava mais.” (Idem p. 93). No final, contrastando sua vida com a obra de ficção: “Eu não sabia que minha história/ era mais bonita que de Robinson Crusoé”.
Esse comportamento gauche é uma variante do conflito do “eu” versus o mundo. A ilha passa a ser o espaço ideal e o continente a dura realidade. A ilha de Drummond é uma espécie de Pasárgada de Manuel Bandeira, um lugar da realização de todos os sonhos impossíveis. A ilha é afinal, como afirmou posteriormente o próprio Drummond: “O refúgio último da liberdade, que em toda parte se busca destruir. Amemos a ilha” (Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 230).
Carlos Drummond de Andrade também sonhou com sua Pasárgada e como disse o próprio poeta, “apartar-se para uma ilha é inaugurar um novo espaço e novo tempo, porque tempo e espaço ordinários lhe são adversos […] há muito sonho essa ilha, se é que não a sonhei sempre”(Op. cit Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 201). Porém, mais amadurecido, no poema “Mundo Grande” confessa: Outrora viajei/ países imaginários, fáceis de habitar, / ilha sem problemas não obstante exaustivas e convocando ao suicídio/ meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem(Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 220).
O primeiro conjunto rítmico de “Infância” (p. 93) apresenta versos marcados por pontos continuados, a metaforizar a monotonia e a vida limitada do pai e da mãe: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé. / Comprida história que não acaba mais” (CDA Idem p. 93).
O último verso encerra esta estrofe com a imagem da comprida história do herói da ilha, para contrapor a imagem da vida limitada dos pais do menino leitor. É o momento em que lia as histórias de ficção; nesse instante a vida não tinha limite e, logo em seguida, no último verso explicita que a história de Robinson Crusoé não tem mesmo conclusão; apesar de numa posição contraditória, concluir a estrofe, com uma percepção realista de que a ficção tem fim também. A vida sim, é mais bela que a literatura, por este motivo os próximos blocos apresentam a realidade viva e poética ao mesmo tempo.
A vida do menino leitor no continente é sinestesicamente iluminada, cheia de canto e perfume do café da manhã, de sua terra, de sua gente, de seus amores infantis. A sua felicidade e a sua história são compridas que não acabam mais. Por último conclui sua narrativa real em dois sonoros blocos rítmicos: “Lá longe meu pai campeava/ no mato sem fim da fazenda. // E eu não sabia que minha história/ era mais bonita que a de Robinson Crusoé.” (p. 94).
“Infância” é um poema em que o artista reflete sua imaturidade por não perceber a grandeza do seu mundo físico e metafísico e, portanto, é uma revelação explícita do seu lado gauche inserido na “Família que me dei”.
- Cantar de amigos
A quarta parte dessa Antologia, Drummond reservou aos seus amigos. Apesar de seu jeito tímido e aparentemente reservado, Carlos Drummond de Andrade, o poeta de um coração maior que o mundo, teve muitos e fiéis amigos. Entre eles, quatro poetas brasileiros: Manuel Bandeira, Américo Facó, Jorge de Lima e Mário de Andrade. Esse último foi seu amigo e confidente, cuja amizade continuou alimentada por correspondência de anos. Sobre esses laços, assim testemunha o próprio Drummond: “As cartas de Mário de Andrade ficaram sendo o acontecimento mais formidável de nossa vida intelectual belo-horizontina. Depois de recebê-las, ficávamos diferentes do que éramos antes. E Diferentes no sentido de mais lúcidos. Quase sempre ele nos matava ilusões, e a morte era tão completa que só podia deixar-nos ofendidos e infelizes. Então reagíamos com injustiças, tolices, o que viesse de momento ao coração envinagrado. Mário recebia essas tolices, mostrava que eram simplesmente tolices, e ficávamos mais amigos... (ANDRADE, C. D. In: Lição do Amigo (1982) p. 27).
Mário de Andrade foi mais do que amigo, foi mestre responsável pela formação do poeta e pelo sentimento do mundo cultuado por Drummond. O poema “Mário de Andrade Desce aos Infernos” (CDA Idem p. 129) é um canto de amizade e reconhecimento pelo modo extraordinário com que Mário de Andrade cantou a poesia, o homem, o Brasil e a cultura em geral: “Daqui a vinte anos farei teu poema/e te cantarei com tal suspiro/que as flores pasmarão, e as abelhas, /confundidas, esvairão seu mel.” (CDA Idem p. 129).
Este poema dedicado ao amigo-poeta “minucioso, implacável, sereno, pulverizado, de tal modo extraordinário que: cabia numa só carta,/ esperava-me na esquina,/ e já um poste depois/ ia descendo o Amazonas,/ tinha coletes de música,/ entre cantares de amigo/ pairava na renda fina / dos Sete Saltos, / na serrania mineira,/ no mangue, no seringal,/ nos mais diversos brasis,/ e para além dos brasis, nas regiões inventadas,/ países a que aspiramos, / fantásticos, / mas certos, inelutáveis, / terra de João invencível, / a rosa do povo aberta…” (CDA Idem. p. 130/131). Estes versos definem e aplaudem o projeto artístico e humano de Mário de Andrade: a pesquisa cerrada da cultura popular, a penetração concreta na vida, na arte e na linguagem do povo brasileiro.
- Na praça de convites
“Na Praça de Convites” tem como temática o choque social, a poesia participante de Sentimento do Mundo (1940), José (1942) e A Rosa do Povo (1945). A preocupação com os problemas sociais marcou a década de 40 na evolução de Carlos Drummond de Andrade. É o período da Segunda Guerra Mundial, da ditadura de Vargas e da difusão de ideias socialistas, capitalistas, existencialistas e freudianas. De um modo geral, tudo isso ecoa nos poemas drummondianos desse período. Paira neles uma atmosfera de medo, incerteza, dúvida e limitações do indivíduo. O “eu” lírico fragmenta-se e retrata uma sociedade igualmente fragmentada.
Drummond jamais fez poesia partidária ou de engajamento político partidário propriamente dito, mas percebe-se em A Rosa do Povo a marca de um intelectual de fortes convicções antiburguesas e marxistas, como fazem pensar os famosos poemas “Nosso Tempo” (CDA Idem p. 160) e “Morte do Leiteiro” (CDA Idem p. 178).
A “Morte do Leiteiro” é uma crônica poética e dramática do cotidiano. O poema apresenta todos os elementos da narrativa: além do narrador, temos personagens, conflito, cenário e tempo: “Há pouco leite no país, / é preciso entregá-lo cedo. / Há muita sede no país, / é preciso entregá-lo cedo”. Estes versos exemplificam, entre muitos na obra do autor, como se pode extrair poesia de um acontecimento da crônica policial: um leiteiro é assassinado na madrugada pelo dono da casa, que o tomou por um ladrão.
Os versos se sucedem com extrema clareza e simplicidade e, no melhor estilo das baladas populares extraídas da vida real, são apresentados os dois personagens: o moço leiteiro e o proprietário. O primeiro é caracterizado com os seguintes versos: “empregado no entreposto; 21 anos; cumpridor de seu dever (sai correndo e distribuindo/ leite bom para gente ruim); mora no último subúrbio”. O segundo é descrito como: preocupado com os ladrões; vive em pânico “(acordou em pânico/ ladrões infestam o bairro)”; está sempre armado (Ladrão? se pega com tiro.); mantém-se acima da polícia (polícia não bota a mão/ nesse filho de meu pai.). Na penúltima estrofe, o verso salva a propriedade, “justifica”, do ponto de vista do assassino, a morte do leiteiro. É uma cena triste, sem luz, sem justiça e sem esperança.
O poeta faz uma oposição entre noite e aurora. A noite é o símbolo da maldade, da ignorância e da injustiça dos homens. A falta de luz alude ao mundo do proprietário, da sociedade capitalista que coloca os valores materiais acima dos valores humanos, do mundo de aparência, da falta da essência, do mundo demasiadamente desumano. Aurora é uma metáfora da esperança, do amanhecer, de uma nova sociedade, que com seu brilho augusto, redimirá as trevas da desumanidade. “Por entre objetos confusos, / mal redimimos da noite, / duas cores se procuram, / suavemente se tocam, / amorosamente se enlaçam, / formando um terceiro tom / a que chamamos aurora”(CDA Idem p. 178).”Nosso tempo” (CDA Idem p. 160) é um poema que reflete literalmente a fragmentação do tempo e dos homens: “Este é tempo de partido,/tempo de homens partidos./Em vão percorremos volumes, /viajamos e nos colorimos./A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua./Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. /As leis não bastam. Os lírios não nascem/da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se/na pedra” […] (CDA Idem p. 160)
“Nosso tempo” é um poema lírico e épico, porque ao falar dos sentimentos, o eu lírico canta, antes de tudo, os sentimentos do mundo; é um poema épico porque constitui um grande painel do horror contemporâneo e traduz toda a história dos tempos modernos com suas adversidades e desejos. A Rosa do Povo é a poesia que emana do desejo do povo, que fala a alma do povo e do caos do mundo. O poeta evoca essa rosa poesia para que todos, juntos, sigam de “Mãos Dadas” (CDA Idem p. 158) anunciando: “Não serei o poeta de um mundo caduco. /Também não cantarei o mundo futuro. /Estou preso à vida e olho meus companheiros. /Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. /Entre eles, considero a enorme realidade. /O presente é tão grande, não nos afastemos. /Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” (CDA Idem p. 158)
Este é um dos mais comentados poemas políticos de todo o Modernismo. É um texto engajado, comprometido, participante, e, ao mesmo tempo, de grande força poética, ritmo intenso e imagens intensas. O tom da fala, a oralidade, a linguagem coloquial muito expressiva, é acentuada pela pulsação livre dos versos que são marcas estilísticas importantes na criação do texto.
Na construção deste poema observa-se a maestria da enumeração de negações – que recusam as variadas formas de escapismos românticos, de fuga da realidade. A estilística da repetição, em especial da palavra presente, carrega ainda mais o texto de alta tensão poética.
Em “Mãos Dadas”, o poeta reafirma sua consciência da existência de outros homens, seus companheiros. Com eles é que se sente de mãos dadas – e renuncia aos seus temas pessoais: “Uma mulher, uma história, os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela”. O eu lírico não mais se refugiará na solidão, porque o que lhe interessa é o tempo presente em que se acha inserido, e os homens que o cercam.
“Os Ombros Suportam o Mundo” (CDA Idem p. 182) é outro poema político e existencial de grande intensidade, representante da poesia social de Drummond, aquela que “o coração é maior, muito maior que o mundo”. Neste texto, o “eu” poético conclui: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos secaram. / […] E o coração está seco” (CDA Idem p. 182).
Este poema está inserido no livro O Sentimento do Mundo (1940). O título do livro se faz presente a partir do momento em que o poeta fala na renúncia dos seus desejos e inquietações pessoais, que só o deixarão na mais absoluta solidão. Não importa sua própria vida, o tempo que passa e a velhice que avança, em face dos problemas do mundo, dos quais ele tem uma dolorosa consciência. Sente-se solidário com os que ainda não se libertaram do sofrimento. Sua vida se impõe como uma ordem: ela deve continuar para enfrentar a realidade de um mundo que ele imagina carregar nos ombros e que não deve pesar mais do que a mão de uma criança.
O Poeta é, antes de tudo, um questionador da realidade conflituosa e do mundo, numa perspectiva antirromântica, antilírica convencional, chamando à vida para o que há por se fazer.
“Os Ombros Suportam o Mundo” é um texto que exemplifica como a linguagem coloquial e as imagens diretas podem ser altamente expressivas, no reconhecimento da necessidade de perceber “que a vida é uma ordem, sem mistificação”(CDA Idem p. 182, sem ilusões vãs, com sobriedade, clareza e desencanto irônico, amargo, embora não resignado.
No poema “Sentimento do Mundo” (CDA Idem p. 154) seu canto ressoa dizendo: “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo, / mas estou cheio de escravos, / minhas lembranças escorrem / e o corpo transige / na confluência do amor”.
O “eu” poético apresenta uma preocupação sócio-política face a época cheia de conflitos: eclosão da Segunda Guerra Mundial, da Guerra Civil espanhola e da ascensão do nazifascismo. O mundo não está apenas desajustado, está fragmentado e caótico.
O poeta sente as dores do mundo e seus versos cantam os sentimentos da humanidade. A poesia é a sua contribuição para minimizar a falta de luz nessa grande noite da guerra e do desamor. O “eu” lírico é uma testemunha e um sujeito ativo que procura contribuir para melhorar, de alguma maneira, os sentimentos desse mundo enlouquecido. Embora, às vezes, tenha a sensação de incapacidade e escreva que: “Quando os corpos passarem, / eu ficarei sozinho/ desfiando a recordação/ do sineiro, da viúva e do microscopista/ que habitavam a barraca/ e não foram encontrados/ ao amanhecer/ / esse amanhecer/ mais noite que a noite” (CDA Idem p. 154-155).
- Amar – amaro
A seção “Amar – amaro” composta por 23 poemas retrata poeticamente as concepções do amor drummondianas. O poeta tematiza a pluralidade do sentimento que liga o homem e a mulher, os problemas das relações humanas, as incertezas, as inconstâncias e os desacertos do amor. Todavia, como o próprio poeta questiona: “Que pode uma criatura senão, / entre criaturas, amar? / amar e esquecer, / amar e malamar, / amar, desamar, amar? / sempre, e até de olhos vidrados, amar”(CDA Idem p.230). O amor é indissociável de certo saber, apresenta-se como enigma e nunca se deixa decifrar inteiramente. O amor suscita o poeta à metáfora da obscuridade (afetiva, intelectiva, existencial), em que se debate ou se tranquiliza. A carga de mistério do sentimento não se assemelha àquela promessa de felicidade arrebatadora com que os românticos sonhavam. O enigma nessa poesia é sintoma de impossibilidade, é sinal de irrealização como pode ser observado em “Entre o Ser e as Coisas” (CDA Idem p. 231): “N’água e na pedra amor deixa gravados/seus hieróglifos e mensagens, suas/verdades mais secretas e mais nuas. /E nem os elementos encantados / sabem do amor que os punge e que é, pungindo, /uma fogueira a arder no dia lindo.”(CDA Idem p. 231).
O amor além de ser um enigma é, antes de tudo, um paradoxo já descrito por Camões como contentamento descontente. Seus poderes são amargos, conduzem o sujeito à destruição, sugerindo o aniquilamento. Por esse motivo o “eu” lírico ironiza essa situação poeticamente em “Amar – amaro” (CDA Idem p. 239):
Por que amou por que a!mou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou soparedsesed
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula ev
idente?
ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
lúgubres de você mesm(o, a)
irm(ã, o) retrato espéculo por que amou?
(CDA Idem p. 239)
O questionamento inicial: “Por que amou por que a!mou” revela uma indagação do “eu” lírico, direcionada a um interlocutor, sobre o porquê o sujeito ter amado, uma vez que tinha conhecimento da complexidade que envolve amor.
O poema é marcado pelo ludismo sígnico e criativo do vocábulo “a!mou”, que pode ser lido, num relance do olhar ou leitura, como “amou”, ou “almou”, (palavra que não existe). No entanto, a letra “a” está adicionada ao ponto de exclamação “!”. Essa configuração sugere que o “a” é abreviatura de amor, seguida de um grito ou som penetrante, simbolizado pelo sinal exclamativo “!”, para expressar emoção, ou surpresa, ou admiração, ou indignação, ou raiva, ou espanto, ou susto, ou exaltação, ou entusiasmo. O “a” pode sugerir ainda o prefixo de origem grega “negação, afastamento, privação, negação, insuficiência ou carência”, enfim, ausência de amor, ou da ação de ter amado, daí o sofrimento. Uma vez que a palavra amor que dizer não à morte; a(mou). Seguindo a história mitológica que Eros ou Cupido quando luta e contra Tânatos (a morte), o amor sempre nega a morte.
No entanto, amor-dor-morte formam um conjunto de fundamental importância na complementação de uma grande paixão. O amor sem a morte não existe. Ama-se mais que a própria vida, morre-se de amor e por amor. Morrer de não morrer, dizia Santa Teresa de Ávila (1515-1582) insistindo no paradoxo de que morrer seria viver. Para a religiosa, morrer pelo amado era viver: “Vivo sem viver em mim/ E tão alta vida espero,/ Que morro por não morrer/ Vivo já fora de mim,/ Depois que morro de amor,/ Porque vivo no Senhor,/ Que me quis só para si./ Meu coração lhe ofereci/ […] Que morro por não morrer./ Esta divina prisão/ Do amor em que hoje vivo,/ Tornou Deus o meu cativo/[…] /Deus meu prisioneiro ver,/Que morro por não morrer”.
Para Bataille, Eros é definido como o impulso, e por isso não se contrapõe a ele, mas o incorpora em sua essência, porque, citando o fenômeno biológico da concepção, que é a base da vida humana, mostra que com a morte do espermatozoide é dada a origem a um novo ser. Daí, a morte se toma vida (cf BATAILLE, G. (1980), p. 120). Vida e morte estão, portanto, na origem da existência erótica e são a oposição entre o caráter contínuo do ser e a descontinuidade dos indivíduos.
Julius Evolas professa que “ao amar e desejar, o homem procura afinal, a confirmação de si próprio, a participação no ser absoluto e na destruição da steresis, privação e da angústia existencial a que ela está ligada” (JULIUS, E. (1976), p. 72). Através do amor, o homem se unifica e se eterniza.
Numa análise psicanalítica, na teoria das pulsões, Sigmund Freud (1893-1895) descreveu antagônicas: a de eros, Eros – uma pulsão com vocação à preservação da vida; e a pulsão de morte, Tânatos – que provocaria à discriminação de tudo o que é vivo, à destruição.
Nessa análise, o amor e ódio, desejo e agressividade, vida e morte, são forças que habitam no ser humano e estão presentes no cotidiano. Essa bipolaridade é o centro dos conflitos psíquicos e sociais que tem como base a interpretação da mitologia grega que narra a história Eros como o deus do amor e Tânatos, como deus da morte.
Numa síntese a respeito de pulsão da morte encontrada na wikipedia, pode ser visto que:
Pulsão de morte (em alemão: Todestrieb), também conhecida como Tânato, é um termo introduzido pelo psicanalista austríaco Sigmund Freud em 1920.Na teoria psicanalítica freudiana clássica, a pulsão de morte é a pulsão em direção à morte e à autodestruição. Foi originalmente proposta por Sabina Spielrein em seu artigo “Destruição como a causa do surgimento” (Die Destruktion als Ursache des Werdens) em 1912, que foi então adotada por Sigmund Freud em 1920 na obra “Além do Princípio do Prazer”. Este conceito foi traduzido como “oposição entre os instintos do ego ou da morte e os instintos sexuais ou de vida”. [Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud usou o plural “pulsões de morte” (Todestriebe) com muito mais frequência do que no singular. A pulsão de morte se opõe a Eros, a tendência à sobrevivência, propagação, sexo e outras pulsões criativas e produtoras de vida. A pulsão de morte às vezes é chamada de “Thanatos” no pensamento pós-freudiano, complementando “Eros”, embora esse termo não tenha sido usado no próprio trabalho de Freud, sendo introduzido por Wilhelm Stekel em 1909 e depois por Paul Federn no contexto atual. Na sua teoria das pulsões Sigmund Freud descreveu duas pulsões antagônicas: Eros, uma pulsão sexual com tendência à preservação da vida, e a pulsão de morte (Tânato) que levaria à segregação de tudo o que é vivo, à destruição. Ambas as pulsões não agem de forma isolada, estão sempre trabalhando em conjunto segundo o princípio de conservação da vida. Como no exemplo de se alimentar, embora haja pulsão de vida presente – sendo a finalidade de se alimentar a manutenção da vida – ela implica-se à pulsão de morte, pois é necessário que se destrua o alimento antes de ingeri-lo. Aí presente um elemento agressivo, de segregação, este se articula à pulsão primeira, como sua necessária contraparte na função geral de conservação. https://pt.wikipedia.org/wiki/Puls%C3%A3o_de_morte
Sobre Eros e Tânatos Freud afirmou que: “nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se dando, não entre pulsões do eu e pulsões sexuais, mas entre pulsões de vida e pulsões de morte” (Freud, 1920, p. 73)
A pulsão de morte está para além do princípio do prazer e do aparelho psíquico. Na visão de Freud, Tânatos simboliza um comportamento autodestrutivo, uma expressão da energia criada pelos instintos de morte. E quando essa energia é remetida para fora e para os outros, é impulsionada como agressão e violência.
Noutra visão, o sinal de explanação está dentro do verbo amar, no pretérito perfeito: “amou” – a!mou. Disposta assim, a palavra “a!mou” insinua que esse amor que passou foi marcado por muitas dores.
Ainda, “a!mou” pode ser visto como um SEMEMA, que, seguindo a ideia de análise componencial de Bernard Pottier. Segundo este linguista francês, o semema é o resultado da soma dos semas que formam o significado global de um lexema. Assim, o semema <cadeira> é o resultado de Sema1 “para sentar”, mais o Sema 2 “com pés”, mais o Sema 3 “com encosto”, mais o Sema 4 “sem braços”: (Cf. LOPES, Edward. 2003, p. 264-267).
Seguindo a visão de Pottier e considerando “a!mou” como semema, teremos: o semema < a!mou > é o resultado de Sema1 ” verbo amar no pretérito; mais o Sema 2 ” sentiu a emoção de amar “, mais o Sema 3 ” exclamou um amor “, mais o Sema 4 ” se entregou de corpo e alma“.
Logo, o Semema < a!mou > = S1 (verbo amar no pretérito) + S2 (sentiu a emoção de amar) + S3 (exclamou um amor) + S4 (se entregou de corpo e alma).
Essa rede de relações acionam a polissemia da palavra poética “a!mou”. Para Rehfeldt “polissemia […] segundo os próprios componentes (poly + sema + ia), é palavra que comporta várias significações” Rehfeldt, 1980, p. 77). E, um significado polissêmico é quando num mesmo significante unem-se vários feixes de semas ou sememas, que se diversificam pelas combinações diferentes de semas. Dessa forma, uma lexia polissêmica é aquela que preserva uma unidade de significado, isto é, a sua unidade é garantida pelo núcleo sêmico comum aos múltiplos setores de semas. Com efeito, esse núcleo sêmico comum é que permite ao falante identificar um único signo linguístico em suas diferentes realizações no discurso. (cf. Para Barbosa 1996 p. 245-249).
O poético é constituído pela plurissignificação, pela polissemia. Ezra Pound instrui que “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. (POUND E. 1990, p. 32).
Diante do exposto, o poético é a explosão de pluralidade de sentidos. O crítico Gilberto Mendonça Teles, afirmou numa entrevista que: Há três mil anos que os poetas vêm definindo a poesia. Para ele a poesia é o que revela o invisível. “Você lê um poema uma vez, na segunda vez, pode descobrir alguma coisa, ou um sentido que não observou ou sentiu na primeira leitura”. (cf. TELES, M. G. Entrevista para PUC TV, 2018)
Ao longo do poema “Amar – amaro”, “eu” lírico que como já afirmei, se dirige a um ser que amou, cometeu erros. Esse interlocutor ou o sujeito da ação de amar, não soube seguir os caminhos perigosos desses sentimentos, “ternos” ou desesperados. Esse indivíduo é marcado pelo gauchismo do poeta, que foge do lado destro e segue sempre pelo lado esquerdo, canhestro; é inseguro no amor, e sem determinação: daí a palavra “desesperados”, está disposta ao avesso, do contrário: ““soparedsesed”.”.
A ironia poética do “eu” lírico segue quando faz outra pergunta: “nesse museu do pardo indiferente/ me diga: mas por que/amar sofrer talvez como se morre/de varíola voluntária vágula ev/idente?”A sonoridade museu do pardo ironicamente alude ao famoso Museu do Prado, um dos mais importantes do mundo, localizado em Madrid, Espanha. Foi construído por Carlos III e inaugurado somente no reinado de Fernando VII. Nele, estão expostas preciosas obras do mundo das artes. Aqui, o “eu” poético lembra que o amor guarda a história da humanidade, é um “museu de tudo”, é a própria história da vida e morte: tudo viu e testemunhou, com indiferença sombria, parda, sem claridade, sem temperamento ou cor definida: museu do pardo indiferente. Sugere também que todos querem viver o amor, conhecê-lo, mesmo correndo o risco de sofrer, de morrer voluntariamente pelo vírus errante do amor, que vagueia invisível e traiçoeiro, embora evidente. No entanto, colocado separadamente nos versos do poema, ev/ idente, sugere que não se identifica de forma tão fácil, não é tão visível, porque é um vírus e se transforma numa virose ou varíola, ameaçadora.
Daí, o “eu” poético retorna a fazer nova inquirição exclamativa, em caixa alta e tudo ligado, numa grande palavra-interrogação: ah PORQUEAMOU/ e se queimou.
Esse tom irônico em torno do desacerto do amor que, como poeta é também um gauche, avesso e cheio de conflito, está retratado no poema “Quadrilha” (CDA p. 193). Esse antológico texto é poema-piada, portanto é carregado de antilirismo, e da ironia amarga e seca sobre os desconcertos do amor, sobre a rede de desencontros e inconstância das relações amorosas. Ironiza ainda, a constante falta de correspondência das cirandas de amores e desgostos. E, um toque especial de humor irônico é enfatizado ao dar um casamento final para Lili, única personagem que não amava ninguém na história.
Construído em versos livres, o poema é dividido em duas partes: na primeira, são observados os caóticos desencontros amorosos de “João que amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém”. Nestes versos só existe o ponto final.
Esses três primeiros versos são construídos com uma oração principal (João amava Teresa) e cinco orações adjetivas. O pronome relativo retoma sempre o objeto da oração anterior e projeta-o como oração que introduz, de maneira a configurar um interminável desencontro, que culmina no nada, na ausência, de ser indicada pelo pronome indefinido ninguém, que encerra o período.
Entre os vários recursos estilísticos, apontados pela crítica, está a poeticidade do primeiro bloco que é acentuado pelo ritmo bem-marcado dos dois primeiros versos que lembra a cadência da quadrilha. O final da dança (que não amava ninguém) tem o ritmo ligeiramente alterado. A metáfora da quadrilha está também no encadeamento das orações do primeiro bloco rítmico e sua estrutura sintática, em que o objeto do verbo é sujeito do verbo seguinte, simbolizando a constante troca de pares da quadrilha.
A segunda parte da dança não tem o ritmo cadenciado da primeira, é escrita de maneira prosaica, é o desfecho da história dessas personagens e, portanto, traduz a ruptura entre o mundo do desejo e o da realidade: “João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili se casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história”. Cada personagem vinculou-se ao seu destino: Longa viagem, convento, morte trágica e física, morte metafísica e trágica (naquela época ficar para titia era morrer tragicamente para o mundo), suicídio e se casar com quem não tinha entrado para a história.
Muitos estudiosos da obra de Drummond chamam atenção para o fato da outra parte da história ser construída com orações coordenadas. Sua única oração subordinada é que não tinha entrado na história. A coordenação indica a não – relação dos fatos expressos pelas orações, o que mostra que as ocorrências na vida das pessoas não guardavam qualquer relação com o que elas desejavam. O verbo ir é intransitivo, concorre para indicar que a ação por ele expressa, não incide sobre nada ou sobre ninguém.
Algumas leituras de “Quadrilha” sustentam que as figuras “ir para os Estados Unidos” e “ir para o convento” remetem ao tema da “evasão espacial”. Nos verbos morrer e ficar, o sujeito é paciente, o que revela que ele não age, mas sofre os acontecimentos. O verbo suicidar-se tem um objeto expresso por pronome reflexivo, mostrando que o ser humano só tem controle sobre as ações que dizem respeito a si mesmo. Suicidar-se remete também ao tema da evasão.
Só o verbo casar indica ação que incide sobre alguém. No entanto, Lili não se casou com uma pessoa (um nome), mas com um sobrenome. Pinto Fernandes é um sobrenome tradicional, o que conota posição, dinheiro. O primeiro sobrenome remete, além disso, à ideia de masculinidade, com toda a carga conotativa que ela possui numa visão estereotipada do casamento tradicional: segurança, apoio, capacidade de liderança.
“Quadrilha” é jogo amoroso que retrata a vida e a arte de compor versos polissêmicos, carregados de sentidos até o máximo grau possível. Mais do que interpretar as possíveis conotações o poema deve ser sentido. “Quadrilha” traduz o amor pela arte da palavra e remete ao leitor comum ou ao crítico especializado, um desejo de descobrir as artes e as manhas desse Amar-amaro drummondiano que sensibiliza e salva a humanidade das dores amargas da ignorância e do desamor.
- Poesia contemplada
“Procura da Poesia” (CDA Idem p. 247) é o poema de Carlos Drummond de Andrade mais analisado pela crítica literária por expressar, por meio da metalinguagem, uma tradução perfeita dos pressupostos teóricos da lírica moderna.
Neste poema, Drummond contempla o ato poético e teoriza com maestria sobre a arte da palavra. Entre as suas orientações, evidencia que não se faz literatura com ideias e sentimentos: O que pensas e sentes isso ainda não é poesia, mas pode vir a ser. É necessário que o eventual assunto do poema (o que pensas e te sentes) encontre a forma de expressão linguística adequada. Mas essa linguística não pode surgir por um trabalho apenas da inteligência: deve nascer espontaneamente da contemplação das palavras. O poeta deve aguardar que as palavras se revelem e, como numa gestação, se unam formas e fundo, dando o nascimento ao poema. Então, sim, o que pensas e sentes se terá transmutado em poesia.
O primeiro segmento de “Procura da Poesia” é todo estruturado pela repetição (anáfora) de frases interrogativas que condenam a busca da poesia por um caminho equivocado, ou seja, confundida com aquilo que “ainda não é poesia”: é apenas o assunto do poema, o mundo físico ou sentimentos individuais entre si. Entre ambos, a poesia e seu eventual assunto, existe o instrumento da arte poética, que é a palavra. Só a palavra organizará o poema. Mas a palavra tem suas características peculiares e suas limitações: “Não faças versos sobre acontecimentos. /Não há criação nem morte perante a poesia. /Diante dela, a vida é um sol estático, /não aquece nem ilumina. /As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. /Não faças poesia com o corpo, / esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. (CDA Idem p. 247)
Pode-se interpretar, à luz do contexto, as proibições de Drummond contidas nessas frases imperativas, marcadas pelo signo do não, da seguinte forma: essas restrições representam uma advertência de Drummond àqueles que pretendem iniciar-se na arte poética. Esta é a lição, para que não se deixe iludir pela presença do mundo físico, dos acontecimentos ou dos sentimentos individuais em si, a ponto de confundi-los com a poesia. A poesia só pode ser descoberta na contemplação das palavras. Elas têm o poder de atuar sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os sentimentos individuais e deles extrair o poético.
O poeta deve mergulhar no reino das palavras, no rio da linguagem e, numa incessante perquirição à procura do poético, chegar às profundezas do discurso, onde tudo é silêncio. O artista chega mais perto e contempla as palavras, então deverá saber decifrá-las, encontrá-las nesse rio da fala, do discurso. O silêncio conduz o indivíduo à sabedoria, à razão, está ligado à retórica. Por meio do silêncio o invisível se revelará, pois a falta de visão inicia a busca da verdade poética, no próprio poema: “Não recomponhas/tua sepultada e merencória infância. /Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. /Que se dissipou, não era poesia. /Que se partiu, cristal não era. (CDA Idem p. 248).
O poeta submerge no reino da linguagem à procura das palavras que estão paralisadas, sem pressa de sair de lá; invade esse reino tentando decifrá-las, pois elas anunciam, tal como a famosa esfinge de Tebas: “Decifra-me ou devoro-te”. O artista deve tomar cada palavra, uma por uma e conhecer a magia de cada uma, com suas múltiplas combinações sintáticas e semânticas; deve percorrer todo o reino e, palmo a palmo, ter conhecimento daquele terreno, pois, se assim não proceder será devorado pelas próprias palavras. Depois, conviver diuturnamente com a linguagem até encontrar a sintaxe invisível do conceito, da melodia do canto poético.
Após descobrir as artes e manhas da poesia e dos mistérios do verdadeiro ouriço que é o poema, o artista cria o texto que não deve, necessariamente, falar do mundo pré-existente. O sentido literário é o fíat, que significa criação.
O mundo físico, os acontecimentos, o corpo, os sentimentos individuais em si, nada disso é ainda poesia. Tudo deve ser recriado, graças ao poder misterioso da palavra, numa nova realidade, em que o mundo se apresente reformulado em termos humanos e o homem se encontre liberto e universalizado (integrado ao mundo). Da nova realidade, só possível pela palavra, surge a poesia.
O poeta deve penetrar surdamente no reino das palavras sem nenhuma ideia preconcebida, humildemente, com atenção e receptividade, buscando a intimidade dos vocábulos, atento a sugestões que deles se desprendem, esperando que as palavras se revelem e mostrem aquela face secreta em que, como num molde, se ajuste à ideia poética.
O reino das palavras implica poder e autonomia. Ora, as palavras são ricas de sentido e potencialidade de comunicação; além disso, possuem aquela face secreta capaz de, unindo forma e fundo, construir o poema. As palavras são independentes do poeta para existir, uma vez que fazem parte do código social, a língua.
O poeta não pode adiantar-se, querendo escolher com a inteligência as palavras que formarão o poema. O que lhe cumpre fazer é, contemplando as palavras, esperar que elas se revelem e extraiam da consciência os elementos poéticos que, com ela fundidos, façam surgir o poema que comunicará a poesia.
Assim, o poder de silêncio é a capacidade que as palavras têm de sozinhas, sem a participação organizada da inteligência do homem, agir como estímulo para extrair do inconsciente o material poético. O poder da palavra é, no poema, a capacidade que o vocábulo possui para comunicar a poesia.
As palavras guardam a impressão, o rastro, o eco, a figura, a face de todas as vivências humanas no mundo. Na verdade, o interior da palavra é o reflexo da alma do homem e do mundo. O ser é manifestado através da linguagem, como afirma Martin Heidegger (1889 – 1976) na obra Carta sobre o humanismo (Über den humanismus) 90, escrita em 1946: A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato de consumara manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam. Não é por ele irradiar um efeito, ou por ser aplicado, que o pensar se transforma em ação. O pensar age enquanto exerce como pensar. […] (HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. 2005, p. 55) De acordo com a sua Essência, a linguagem é a casa do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e disposta a partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da linguagem numa correspondência ao Ser e como uma tal correspondência, isto é, como a morada da Essência do homem”. (Op. cit. 2005 p. 55).
Assim, os poetas são os guardiões da linguagem movimentada pelas palavras, que moram dentro do ser que poeta e que tem o domínio de lutar contra as intempéries da linguagem poética, que não se edifica de repente. O poeta se constrói ao longo de um trabalho diuturno com as palavras, como certifica o poema: “Penetra surdamente no reino das palavras. /Lá estão os poemas que esperam ser escritos. /Estão paralisados, mas não há desespero, /há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. /Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. /Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. /Espera que cada um se realize e consume/com seu poder de palavra/e seu poder de silêncio. /Não forces o poema a desprender-se do limbo. /Não colhas no chão o poema que se perdeu. /Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada/no espaço. /Chega mais perto e contempla as palavras. /Cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra /e te pergunta, sem interesse pela resposta, /pobre ou terrível, que lhe deres:/Trouxeste a chave?” (CDA Idem p. 248-249)
A construção de um texto poético poderia ser comparada a um poliedro de mil faces. Cada face teria a capacidade de comunicar uma ideia ou um sentimento. As faces secretas não se revelam facilmente, a não ser no momento em que o poeta está psicologicamente preparado para receber a mensagem do inconsciente.
Em Trazer a chave significa que o poeta deve apresentar-se psicologicamente preparado para receber a revelação das palavras, sem nenhuma ideia preconcebida, humilde, disposto a receber, atento às sugestões. Caso contrário, não abrirá as portas do “segredo”: as palavras reagirão desfavoravelmente e nada revelarão.
Essas lições de poesia drummondianas levaram muitos críticos a afirmar que o poeta mineiro é o mais importante teórico da moderna poesia brasileira, uma vez que os princípios de sua Poética (é claro, de sua retórica) provêm simultaneamente do mesmo ato criador da poesia. De acordo com Gilberto Mendonça Teles: “A atenção do poeta se torna intransitiva, volta-se para si mesma, observando a criação de dentro para fora, na sua raiz de modo que a linguagem é que se torna objeto da especulação poética. Daí a metalinguagem, o poema sobre o poema, sobre a poesia, sobre a linguagem, sobre a gramática, enfim sobre os elementos do discurso poético. (Teles, G. M. 1989, p. 237).
O poema “O Lutador” (p. 243) é outro exemplo da melhor Poética – retórica do Modernismo. É um metapoema que dá lição da concepção universal da poética moderna, da luta diuturna através do reino das palavras e da descoberta de suas faces secretas e enigmáticas. Ao falar das dificuldades na relação com as palavras, o poeta filosofa sobre a arte poética dizendo: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos / mal rompe a manhã. / São muitas, eu pouco. / Algumas, tão fortes / como o javali. / Não me julgo louco. / Se o fosse, teria / poder de encantá-las.” (CDA Idem p. 243)
A opção por versos curtos estruturando o poema confere ao texto um ritmo de tensão, refletindo o momento de luta que o poema procura captar.
Para escrever poesia não basta ter boa intenção, é preciso mais do que isso: é necessário muita luta, lucidez e uma certa frieza para realizar essa obra de arte.
Em “O Lutador”, Drummond de Andrade desmistifica o conceito de poesia como algo mágico e como tarefa divina. O trabalho poético, na lição do poeta, é uma atividade produtiva, igual a tantas outras na sociedade, é uma luta pelo sustento, daí afirmar: mas lúcido e frio, / apareço e tento / apanhar algumas / para meu sustento / num dia de vida.
“O Lutador” reitera a teoria que Drummond apresenta em “Procura da Poesia”, de que o poeta deve penetrar no reino da palavra através de uma luta corpo a corpo; todo o tempo sem nenhuma ideia pré-concebida, humildemente, com atenção e receptividade, buscando a intimidade das palavras, atento às sugestões que delas se desprendem, esperando que as palavras revelem aquela face secreta em que, como num molde, se ajuste a ideia poética.
Nessa seção denominada “Poesia Contemplada”, além dos poemas “Procura da Poesia” (CDA Idem p. 247) e “O Lutador” (CDA Idem p. 243) que fundamentam as teorias de uma nova Poética e de uma nova Retórica do modernismo brasileiro, Drummond escolheu outras lições importantes: “Brinde no Banquete das Musas” (CDA Idem p. 250), “Poema-Orelha” (CDA Idem p. 252), “Conclusão” (CDA Idem p. 254) e “Oficina Irritada” (CDA Idem p. 251).
Em “Oficina Irritada” o poeta expõe: “eu quero compor um soneto duro / como poeta algum ousara escrever. / eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler”. Este poema é um exemplo da fase neoclassizante de Drummond que adere às normas fixas, como soneto e o recurso à chamada “expressão nobre” do clássico, filosófico e perfeccionista. Essa adesão foi vista com certo azedume pelos críticos de vanguarda. Por outro lado, foi bem recebida pelos críticos em geral e pelo grande número de admiradores da poesia de Carlos Drummond de Andrade.
- Uma, duas argolinhas
Esta seção “Uma, duas argolinhas” corresponde aos exercícios lúdicos. Os poemas escolhidos por Drummond para esta parte foram: “Sinal de Apito” (CDA Idem p. 257), “Política Literária” (CDA Idem p. 258), “Os Materiais da Vida” (CDA Idem p. 259), “Áporo” (CDA Idem p. 260) e “Caso Pluvioso” (CDA Idem p. 261).
O poema “Sinal de Apito” (CDA Idem p. 257), publicado no livro Alguma Poesia (1930), explana a marca da renovação literária de 1922 e incorpora o humor e o tom de piada do primeiro período do Modernismo brasileiro que marcou influência na poesia drummondiana da primeira fase: Um silvo breve: “Atenção siga. / Dois silvos breves: Pare / Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna. / Um silvo longo: Diminua a marcha. / Um silvo longo e breve: Motorista a postos” (CDA Idem p. 257).
Estes versos além de assinalarem a rebeldia às formas de versificar consagradas até então, buscam uma linguagem direta, pessoal, mas tangenciando o “poema-piada” posto em voga pelos modernistas, num jogo poético marcado por ironia, humor, ideias, ação e, antes de tudo, criação.
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- A Tentativa de exploração e de interpretação do estar no mundo
Em “Especulações em “Torno da Palavra Homem” (CDA Idem p. 295) o poeta questiona: Que milagre é o homem? / Que sonho, que sombra? / Mas existe o homem? O “eu” poético apresenta uma inquietação em consequência do momento da autoanálise e do mergulho metafísico em torno da sua história, do seu passado, do caminho para o entendimento da própria existência.
Nos 28 poemas escolhidos por Drummond para essa parte da Antologia denominada “Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” o autor busca entendimento sobre o sentido da vida e do homem, ao mesmo tempo que filosofa sobre a própria linguagem poética e seu Claro Enigma(1951).
A poesia filosófica de Carlos Drummond de Andrade reflete sobre temas universais de caráter metafísico como: vida, morte, tempo, velhice, amor, além, é claro, dos temas sempre presentes, como a família, a infância e a própria poesia.
O pessimismo com que esses temas são abordados chega a ser maior do que a fase inicial do poeta, denominada de gauche; é um pessimismo corrosivo, ácido, uma vez que esperança de um tempo de harmonia e homens presentes já se frustrou.
O desejo de autoconhecimento, que guiava o poeta através das sete faces daquele poema de abertura Alguma Poesia (1930), mantém-se e as cenas da vida vão sendo projetadas numa tela imaginária que a poesia focaliza.
O cultivado hábito de se auto admirar não significa necessariamente um engano: o poeta jamais perde a consciência da relatividade de tudo, inclusive da sua própria capacidade de investigar as coisas. Por isso, muitas ilusões se perdem e mesmo a madureza, que poderia trazer alguma quietude, é vista sobe outro ângulo.
O poema “A Ingaia Ciência” (CDA Idem p. 316) ilustra essa tendência filosófica e ao mesmo tempo classicizante de Drummond: A madureza, esse terrível prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo sabor gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma estela. (A expressão “ingaia ciência”: neologismo criado pelo autor a partir da negação de gaia ciência, arte de poetar entre os provençais da Idade Média.
O filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 -1900) também escreveu um livro intitulado A Gaia Ciência (traduzida também com Alegre Sabedoria, ou Ciência Gaiata (Die fröhliche Wissenschaft, 1882), no qual o pensador reflete sobre questões como a moral, a necessidade de crença, o sentimento de potência etc.).
Este poema evidencia que associado à noção de maturidade, o poeta assume o exercício da memória, buscando, através dela, conquistar a compreensão das coisas que o atormentam: os problemas da família, as angústias que trouxe da terra, a perplexidade diante do amor. E se mostra convicto da inviabilidade do mundo gauche com seus avessos.
Entretanto, foi esse avesso do avesso que nos legou o polêmico “No Meio do Caminho” (CDA Idem p. 267). Sobre esses versos Drummond afirma: Sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais. (Op. Cit. Andrade, C. A. In: Coutinho, A. (1964) p. 525).
“No Meio do Caminho” causou grande escândalo e muita divergência quando publicado e, mesmo depois, a tal ponto que o próprio poeta organizou, em 1968, uma antologia, Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema, onde reuniu tudo que se publicou a respeito, ou se fez, parodiando seus versos.
O poema “No Meio do Caminho”, sem dúvida, fez história no Modernismo como o mais polêmico texto poético, construído através de uma estrutura revolucionária, de caráter aparentemente irônico e caótico para os leitores mais desavisados. A arte é estranhamento e, é também, na concepção de Ezra Pound novidade que permanece novidade. (Pound, E. (1990) p. 32). “No Meio do Caminho” foi essa novidade estranha e poética formada por versos que se repetem, circulares, em torno da pedra: No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra.
Uma leitura inocente leria apenas uma frase que vai até a pedra e volta (no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho). No entanto, tal leitura não passa da mais pura insensatez, porque o texto sugere muitas interpretações, menos esta visão denotativa e direta da frase. A organização sintática e cheia de repetição é o fíat, isto é, a maior criação do poema.
O poema é, antes de tudo, literatura e, como tal, é linguagem carregado de conotação ou de sentido figurado, portanto difere da linguagem denotativa, porque sua função não é só comunicar, mas também expressar emoções particulares do autor, ser original.
A famosa “pedra” no meio do caminho pode significar inúmeras coisas: pedra mesmo, no sentido abstrato e restrito do dicionário; dificuldade, o que atrapalha; coisa marcante, duradoura, eterna; coisa que corta pétrea e, enfim, um mundo de significações.
Entre os vários recursos de estilo utilizados por Drummond neste genial poema, vários críticos literários realçam a caprichosa disposição das palavras em cada verso. Estudiosos da obra drummondiana enfatizam a colocação estratégica da palavra “pedra”. Apontam que sobre a sílaba tônica “pé” se descarrega o ímpeto do fluxo rítmico e sonoro crescente formado pela sequência de nasais envolvendo e arrastando sons vocálicos fechados.
O dinamismo desse movimento imita o ritmo e o rumor de sucessivos golpes de martelo. A pedra, símbolo da dificuldade para a expressão poética, é que recebe as investidas. O primeiro verso corresponde à primeira martelada, desferida por quem ainda está excessivamente confiante ou ainda não percebeu a dureza da pedra; assim, revela-se inútil. Então se sucede a segunda martelada, desferida com maior violência, mas que patenteia, no recuo do martelo (observe-se a colocação da palavra “pedra” no meio do verso), a impotência do golpe; a terceira, breve, de preparação talvez para novo ímpeto, pode representar a concentração das forças mirando alvo bem determinado (o verso é curto, seguido de uma espécie de pausa ou silêncio de atenção concentrada); a quarta e última confirma definitivamente a invulnerabilidade da pedra e o despreparo do que descarregou os golpes.
E a mensagem – a dificuldade do poeta em penetrar no reino das palavras – encontra-se esclarecida nos versos que seguem: o poeta humildemente confessa que jamais se esquecerá da experiência difícil que teve com as palavras no início de sua atividade de artista (com certeza ainda não se julgava psicologicamente preparado, ainda não tinha “trazida a chave…”).
Esta é uma interpretação coerente, por outro lado, a arte traz a marca do enigma e as marteladas doloridas e sonoras das dificuldades labirínticas da vida. “No Meio do Caminho tem uma Pedra” expressa toda a pluralidade de imagens e sentidos que o texto artístico metaforiza, com uma simplicidade singular.
Carlos Drummond demonstrou também que o belo e o poético residem basicamente na criatividade, não precisam da retórica e da técnica do poeta-escultor como defendiam os parnasianos.
Nesse sentido, pode-se interpretá-lo como uma crítica às teorias passadistas, que comparavam a criação do artista da palavra, com o trabalho do ourives com seus martelos e suas pedras preciosas lapidadas, como enfatizou Olavo Bilac no poema “Profissão de fé”. Entre o poeta e o artesão tinha uma pedra no meio do caminho, uma vez que, se o segundo buscava a perfeição e a cópia fiel de uma realidade, o primeiro deveria tem como meta a criação de um mundo cheio de significados.
No meio do caminho tinha uma pedra é um verso que se repete circularmente, como as situações da vida: más e boas. Já foi dito que se os versos iniciais formam um crescendo de intensidade, os finais retrocedem, num minuendo (o oitavo repete o terceiro; o nono, o segundo; o décimo, o primeiro), sugerindo ritmicamente o eco, a lembrança da luta que volta a seu lugar na memória.
Ora, vida é um círculo contínuo e os acontecimentos são marcados na memória: das retinas tão fatigadas. Memória é a capacidade de voltar no tempo. O vocábulo repetir vem do latim repetitione e deriva, segundo a etimologia, do verbo latino petere, que significa procurar, e buscar de novo, procurar uma vez mais, esforçar-se por alcançar de novo.
Affonso Romano de Sant’Anna analisando a obra de Drummond escreve que memória é re-sentir. O ato de repetir é basicamente uma atitude contra o tempo, necessidade de fixar a essência do que passou e reexperimentar sensações do prazer antigo diante do desconforto do tempo presente. (Op. Cit Sant’Anna, A. R. (1980) p. 201). Memória é a tentativa de reviver um momento, recordar os acontecimentos que de alguma forma marcaram nossa vida. Heidegger assinala que: “Investigar: o que há com o Ser? – não significa nada menos do que re-petir o princípio de nossa existência espiritual-Histórica, a fim de transformá-lo em um outro princípio […] Um princípio, porém, não se re-pete, voltando para ele como algo de outros tempos e hoje já conhecido, que meramente se deve imitar. Um princípio se re-pete, deixando-se que ele principie de novo, de modo originário, com tudo o que um verdadeiro princípio traz consigo de estranho, obscuro e incerto”. (Heidegger, A. R. 1987, p. 65).
Recordar é a reiteração desejada de momentos importantes da existência. Alguns críticos estudaram a repetição drummondiana, entre eles Antônio Houaiss e Emanuel Moraes e, de forma singular, Gilberto Mendonça Teles, com a sua obra Drummond a Estilística da Repetição. Nesta obra, o poeta-crítico assinala que a repetição é uma constante na poética do criador de “No Meio do Caminho” e se verifica tanto na estrutura formal (versos, rimas etc.), quanto nos mínimos fonemas. Gilberto Mendonça Teles defende que a repetição parece originar-se dessa ânsia de superação do indizível. (Teles, G. M. 1976, p. 35).
“No meio do caminho” apesar de ser um retrato irônico e antilírico da vida, demonstra uma verossimilhança que sangra a realidade com suas pedras sonoras e, por meio de metáforas, diz o indizível e desperta o homem para sua humanidade adormecida.
Se o poema tem uma tonalidade avessa, torta, gauche, meio caótica e repetitiva, tem os tons da vida, que nem sempre são claros, coloridos e belos. “No Meio do Caminho” traduz os sentimentos do mundo que o poeta posteriormente vai falar através da misteriosa voz de seus poemas, porque como definiu Otávio Paz em O Arco e a Lira a criação poética é um mistério porque consiste em falar dos deuses pela boca humana. (Paz, O. 1982 p. 196).
- Suplemento
Esta Antologia Poética é finalizada com a seção denominada “Suplemento” composto por 15 poemas que trazem lições de vida e de coisas. Nesses textos Carlos Drummond de Andrade retoma elementos de sua poética como as raízes de seu ser, a própria história, as contradições do amor, o estar no mundo e até mesmo as questões sociais como a paz, como no poema “Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz” (CDA Idem p. 368).
O poema “O Relógio” (CDA Idem p. 344) marca as batidas da poética deste poeta maior que, com ironia e lirismo, expõe sua visão crítica do homem e sua inquietação diante da vida: Nenhum igual àquele. / A hora no bolso do colete é furtiva, / a hora na parede da sala é calma, / a hora na incidência da luz é silenciosa. / Mas a hora no relógio da Matriz é grave / como a consciência / E repete. Repete.
Nesta Antologia, o autor – privilegiado autor leitor de sua obra – apresentou-nos aqueles poemas que ele considerar os principais núcleos de sua poesia e, como afirmou, “algumas caberiam talvez em outra seção que não a escolhida, ou em mais de uma. A razão da escolha está na tônica da composição, ou no engano do autor”. (Op. cit Andrade C. D. (2001) p. 17). O certo é que Drummond conduz o leitor numa viagem cujo destino é, sem dúvida, o maior conhecimento do perfil da obra de um dos maiores poetas da Língua Portuguesa.
- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – POESIA EIS A RAZÃO DE TUDO.
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, a 31 de outubro de 1902, filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e D. Julieta Augusta Drummond de Andrade.
Fez os estudos primários em Itabira e secundários em Belo Horizonte e Nova Friburgo. Aos 13 anos de idade já pertencia ao Grêmio Dramático e Literário Artur Azevedo, de sua Cidade natal, e aí pronunciou uma conferência. Suas tendências literárias aparecem cedo, já no Grupo Escolar Coronel José Batista, onde esteve inicialmente.
Ainda adolescente, começou a colaborar em jornais e revistas de Belo Horizonte e do Rio. Em 1916 matriculou-se no Colégio Arnaldo, de Belo Horizonte, onde conheceu Gustavo Capanema e Afonso Arinos, que continuariam a ser, pela vida afora, dois de seus grandes amigos.
Em 1925, funda, com Martins de Almeida e Emílio Moura, A Revista que desde o primeiro número se tornou órgão representativo do Modernismo em Minas Gerais.
Nesse mesmo ano, o poeta casa-se com dona Dolores Dutra de Morais e conclui o curso de Farmácia. Contudo, desinteressado da profissão de farmacêutico, inadaptado à vida de fazendeiro, leciona português e Geografia no Ginásio Sul-Americano de Itabira.
Mas não é ainda a carreira do magistério que o atrai. Por iniciativa de Alberto Campos, Drummond volta a Belo Horizonte, para ocupar o cargo de redator e, logo em seguida, o de redator-chefe do Diário de Minas. Itabira se tornaria, agora, apenas lembrança… uma fotografia na parede. / Mas como dói!
Vive, então, a alegria da paternidade misturada à dor. Seu primeiro filho, Carlos Flávio, morre momentos após o nascimento, levando o poeta a assinalar anos depois: Interrogo meu filho, / objeto de ar: / em que gruta ou concha / quedas abstratas?
Em 1928, nasce sua filha, Maria Julieta; é ainda neste mesmo ano que o poeta se torna “pedra de escândalo”, quando a Revista Antropofágica, de São Paulo, publica, em julho, seu poema “No Meio do Caminho”. Diz o cronista, falando do poeta: (…) sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais (…)
A partir de l930, com alguma poesia, o poeta mineiro inicia a publicação de uma das maiores Obras Poéticas da Literatura Brasileira, em extensão e labor artístico. Publicou acerca de vinte e oito livros de poemas em vida e uma obra póstuma. Além de poeta, Drummond foi admirável prosador (contista). Entre 1944, com a publicação de Confissões de Minas, até 1987 com Moça Deitada na Grama, lança dezesseis livros de crônicas, além de duas obras de literatura infantil, uma charge brasileira intitulada O Pipoqueiro da Esquina (1981) em parceria com Ziraldo. (Andrade, Carlos Drummond de; Pinto, Ziraldo Alves – O Pipoqueiro da esquina. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. 111 pp. Brochura conservada, charges brasileiras; ilustrações do Ziraldo.)
Entre 1979 e 1981, Carlos Drummond de Andrade publicou em sua coluna no caderno B do Jornal do Brasil as famosas “pipocas”, nome que dera a seus chistes, frases-relâmpagos cheias de humor que retratavam criticamente o país. Admirador e amigo de Drummond, o artista, escritor e jornalista Ziraldo percebeu que as sátiras das “pipocas” à vida brasileira eram potencialmente charges – faltavam apenas os desenhos que se associassem às palavras. Ziraldo disse isso ao poeta, que, entusiasta do trabalho de seu conterrâneo, concordou com o convite que se seguiu: juntassem palavra e traço. Surgiria, a seguir, “O pipoqueiro da esquina”, publicado pela Codecri em 1981, livro no qual várias “pipocas” ou chistes retratam um país sempre desconcertante e desconcertado. O que reitera a atualidade de Drummond. Os chistes e as ilustrações das charges de Ziraldo expressam o Brasil do agora. Assim comprova a visão aristotélica sobre o historiador e o poeta em Poética, quando prescreveu que a poesia (arte) é superior à história porque é mais filosófica, mais séria e mais universal, pois o artista atribui a um indivíduo de determinada natureza pensamento e ações, por liame, e transfigura realidades. O historiador, ao escrever a história de uma pessoa, narra sua vida em particular e de acordo com a conveniência (Aristóteles, 1987, p.209). O artista é um filósofo-criador.
Assim, Aristóteles define que a diferença entre Heródoto e Homero é que o historiador conta os fatos que sucederam e o poeta narra os fatos que poderiam acontecer. Portanto, o artista da palavra é mais filosófico e mais sério do que o cientista, uma vez que o texto do poeta se refere ao universal, (dotando às suas personagens naturezas, pensamentos e ações a um liame de necessidade e verossimilhança) e o historiador narra fatos particulares, acontecidos, que são registrados a partir da versão teórica – científica do cronista da história de um povo.
A narrativa do poeta (do artista da palavra) funciona como um “ritual” ou a imitação da ação humana como um todo, e não simplesmente como uma mímesis praxeosou imitação de uma ação, traduz um mito. Assim, o conceito de mito advém de sua relação originária com o enredo da narrativa (mythos), extraído dos componentes da poesia codificada por Aristóteles, ligado ao sentido primitivo de “trama” e que passou a significar crescentemente “narração”, acompanhando uma propensão da narrativa de passar de uma “ênfase ficcional” primitiva para uma tendência “temática” posterior.
Diferente do sentido comum e sobrenatural: uma tendência para narrar uma estória que é originalmente uma estória a respeito de personagens que podem fazer qualquer coisa (Ricouer, (1994, p.80).
Assim reitero que, como já afirmei anteriormente, literatura, portanto, é ficção – palavra latina que significa “fazer”, “moldar” e ainda “fingir”, “imaginar”, portanto, é criação e enigma. Por isso, o texto artístico traz em si o enigma da Esfinge, “decifra-me ou te devoro”. Além do caráter enigmático, a arte literária é em si um paradoxo, uma vez que mesmo fazendo referência a alguma realidade é, antes de tudo, criação e não quer expressar necessariamente nenhum mundo preexistente. No entanto, a arte de Drummond é eterna porque é sugestão e ao mesmo tempo transfigura o real, sua poesia é plural, pois que expressa uma realidade do passado, do presente, do agora e do futuro com arte, humor e antes, de tudo, poesia.
A importância de sua obra completa de Drummond pode ser avaliada pelas palavras de Otto Maria Carpeaux, na Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, Editora Letras e Artes, 1964, p. 298:
“A bibliografia sobre Carlos Drummond de Andrade é muito numerosa. Nenhum outro poeta moderno provocou discussão tão apaixonada, seja dos admiradores que lhe interpretam de maneira diferente a poesia, seja dos ‘conservadores’ que o escolheram como alvo de ataques: discussões que não passam de sintomas da forte influência exercida pela originalidade e personalidade do poeta, hoje quase geralmente reconhecido como o maior do Brasil”. (CARPEAUX, O. M., 1964, p. 298)
No dia 17 de agosto de 1987, dois meses antes do aniversário de 85 anos, por insuficiência cardiorrespiratória, morre o Poeta Maior Carlos Drummond de Andrade. Todavia, o seu coração maior que o mundo continua a bater através da sua divina obra que é eterna e sempre traduz uma novidade que permanece novidade: na tendência, no material, no procedimento, nas temáticas, nas lições das coisas da vida e, principalmente, na arte poética deste poeta de alma e ofício.
- A POESIA DE 30
Drummond pertence ao segundo tempo do Modernismo brasileiro, fase que amadurece as propostas de 22, através da criação de uma expressão verdadeiramente brasileira, sem deixar de ser universal. Ou melhor, essa fase integra sabiamente nossa expressão poética ao sistema contemporâneo ocidental. Abranda-se o entusiasmo por nossas particularidades exóticas de país tropical. O Brasil passa a ser encarado como uma parcela do Ocidente, o que, de fato, coincide com nossa condição de povo formado sob o influxo dominante da civilização europeia. Não são esquecidas as influências da cultura negra, mas sente-se mais o peso do Capitalismo, do Marxismo, do Existencialismo e da Psicanálise. Além da voz dominante de Drummond, participaram desse processo poetas como Murilo Mendes, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Jorge de Lima, entre outros.
- A ANTOLOGIA POÉTICA DRUMMOND
A Antologia Poética de Drummond contém os dez melhores livros da poesia desse poeta maior. Foi editado pela primeira vez, com o título de Reunião, em 1969, pela livraria José Olympio Editora, quando poeta tinha 67 anos. O título Reuniãoe o próprio volume foram concebidos provisoriamente, porque o poeta pretendia ampliar o volume e alterar o título à medida que fosse escrevendo novos livros. Isso vinha acontecendo sistematicamente com as edições conjuntas de suas poesias e tornou a acontecer em 1983, quando Reunião foi acrescida de nove livros e reeditado com o nome de Nova Reunião– Nove livros de Poesia, e posteriormente o subtítulo denominado Dez Livros de Poesia: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José (1942), A Rosa do Povo (1945), Novos Poemas (1948), Claro Enigma (1951), Fazendeiros do Ar (1954), A Vida Passada a Limpo (1959) e Lição de Coisas (1962).
Ao organizar a sua Antologia Poética, em 1962, Drummond optou por apresentá-la em certos núcleos temáticos, que seriam, segundo suas próprias palavras, “certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto. A Antologia lhe pareceu assim mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais fiel. Escolhidos e agrupados os poemas sob esse critério, resultou uma Antologia que não segue a divisão por livros nem obedece a cronologia rigorosa”. (Op. cit. ANDRADE C. D. (2002) p. 17). Desta forma, o autor ainda afirma que não selecionou os poemas pela “qualidade nem pelas fases que acaso se observam em sua carreira poética. Cuidou antes de localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que acondicionam e definem, em conjunto”. (ANDRADE C. D. (2002) p. 17).
Os temas e as respectivas seções são os seguintes: O indivíduo (Um eu todo retorcido), a terra natal (Uma província: esta), a família (A família que me dei), amigos (Cantar de amigos), o choque social (Na praça de convites), o conhecimento amoroso (Amar-amaro), a própria poesia (Poesia contemplada), exercícios lúdicos (Uma, duas argolinhas), uma visão, ou tentativa de exploração e de interpretação da existência (Tentativa de exploração e interpretação do estar-no-mundo), outros temas (Suplemento).
Não é difícil perceber que todos esses temas estão estreitamente interligados. O indivíduo surge de uma família numa terra qualquer. Cresce. Faz amigos e frequenta a praça, onde amplia suas relações e conhece a política e o amor. Então, descobre a poesia, na qual tanto se adestra que chega a brincar com as palavras e compõe opinião sobre as coisas, o mundo e a existência.
Como se vê, os oito últimos temas da Antologia Poética de Carlos Drummond de Andradenão passam de variações ou projeções do primeiro – o indivíduo. Assim, deve ser lida como uma espécie de unipoema, no qual se condensa uma das grandes biografias espirituais deste século, a do mineiro Carlos Drummond de Andrade.
2.1. Um eu todo retorcido
A poesia é a arte que se manifesta pela palavra e o seu objeto é o reino mágico e infinito do espírito. A poesia é a comunicação, a expressão do “eu” do artista por meio do signo literário, isto é, da palavra plurissignificante e da metáfora. Através deste “eu” o poeta vê o mundo e simultaneamente volta para si próprio, numa atitude contemplativa e filosófica. Porém, o filósofo contempla o mundo exterior, ideias gerais, objetivas, universais. Contempla também o mundo interior, ideias particulares, subjetivas, dentro dos seus limites pessoais. No entanto, paradoxalmente, ao contemplar o próprio reino, o poeta descobre o mundo inteiro.
O artista da palavra dirige-se, pois, para dentro de seu mundo interior, à procura daquilo que o revela, enquanto ser dotado de fantasia criadora e vivências. Porém, no reflexo da própria imagem, o poeta vê o sentimento do mundo refletido nas águas da vida. Desta forma, os mundos subjetivos e objetivo aderem-se, imbricam-se, formando uma só entidade subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, retratando a vida, com a predominância do primeiro. A poesia é a revelação espiritual da vida, revela o mundo e cria outro, o poético.
A poética de Carlos Drummond de Andrade exercita esse imbricamento entre os mundos subjetivos e objetivo, entre o “eu” e o mundo exterior. No entanto, logo nas primeiras obras pode ser observado um conflito entre o eu versus o mundo. Ao contemplar as águas da vida, viu imagens de um indivíduo desajustado, marginalizado, à esquerda dos acontecimentos, portanto um gauche: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. (Idem p. 21). Gauche é um adjetivo francês que, no caso, significa “sem jeito”, de esquerda, às avessas, tímido; é também postura peculiar ao poeta em face de si e do mundo. Caracteriza ainda o contínuo desajustamento entre a sua realidade e realidade exterior. Há uma crise entre sujeito e objeto que, ao invés de interagirem e se completarem, terminam por se opor conflituosamente.
O “Poema de Sete Faces” (Idem p. 21) abre Alguma Poesia(1930), a primeira obra publicada de Drummond. Neste poema o tema do gauchismo é apresentado pela primeira vez e contém uma síntese de vários aspectos que caracterizarão a obra do autor no futuro. O poema apresenta sete estrofes que, aparentemente, nada têm a ver em si. Porém, sete é um número mágico, alquímico, simboliza, entre outras coisas, a arte e a perfeição.
Por meio das “sete faces” /estrofes, o poeta exprime sua solidão ante as coisas e as pessoas que o cercam. Fora de si mesmo a realidade nada lhe diz senão que está sozinho com sua timidez e sua falta de jeito para viver, que lhe veio de nascença. Não fosse a inquietação dos homens, a vida seria mais bela. De súbito, o poeta faz um comovido apelo a Deus, nascido da consciência da sua própria fraqueza. Diante dela o mundo lhe parece vasto e o “eu” poético não vê a possibilidade de se fazer entender, mesmo apelando ironicamente para uma rima como solução. No entanto, ele sabe que vasto também é o sentimento que carrega em seu coração. Para contê-lo, apela para um recurso típico da sua maneira de ser, na última estrofe, atribuindo sua emoção à bebida e a beleza da lua.
O gauchismo do “eu” lírico é anunciado por “Um Anjo Torto”: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”(Idem p. 21). Os anjos são comuns nas histórias religiosas, como é o caso do anjo Gabriel, que ordena a José que fuja de Jerusalém com o menino Jesus. Os anjos bíblicos, geralmente, são bons, prenunciam coisas boas e auxiliam as pessoas a encontrar melhor caminho; enfim, são anjos de luz, numa primeira leitura da possibilidade sêmica do texto. O anjo que aparece ao “eu” lírico é o contrário da imagem religiosa: é “torto”, vive “na sombra”, tem um olhar incerto, expressão enigmática e irônica. É um anjo barroco, como aqueles das igrejas mineiras, marcados por mistérios, contradições e linhas que oscilam entre o bem e o mal. É esta figura cheia de estranhamento que prediz o futuro gauche do poeta e, é este o momento que a arte adquire forma, voz, ação e revela suas sete faces ao grande poeta Carlos Drummond de Andrade.
Fazendo uma interpretação simples, poderíamos dizer que o “eu lírico”, diante do sombrio anúncio, vê o mundo vazio e superficial e as relações humanas parecem ser mediadas apenas pelo desejo: “As casas espiam os homens/ que correm atrás de mulheres. / À tarde talvez fosse azul, / não houvesse tantos desejos” (Idem p. 21). Porém, foi por meio do verbo anunciado que o nosso artista descobriu a palavra poética e seguiu seu caminho de sons, vocábulos, imagens, alquimia e a marca do humano. A partir instante descoberta do poético, o artista da palavra fez da rima, não uma solução, mas uma ponte entre o homem e sua própria humanidade perdida na falta de sensibilidade e arrogância.
Drummond traz na alma os sentimentos deste mundo que é mais gauche do que o escritor. Este artista, apesar de demonstrar um aparente “orgulho” e introspecção, traduziu sempre o sentimento mais nobre que existe no mundo: o amor ao próximo e fez de sua poesia a sua vitória verbal, ao explanar nas sete faces da palavra poética, todo o lirismo que o mundo precisava possuir.
Este sentimento de solidariedade do autor se estende ao homem do povo chamado “José” (Idem p. 30). Esse personagem pode ser uma encarnação do próprio poeta, mas também a do ser humano, do seu semelhante, que sofre todas as dificuldades e decepções desta vida, mas continua a viver com obstinação, apesar de não ter nenhuma perspectiva, nem mesmo para onde ir: “E agora, José? /A festa acabou, /a luz apagou, /o povo sumiu, / a noite esfriou, /e agora, José? /e agora, você? /você que é sem nome, /que zomba dos outros, /você que faz versos, /que ama, protesta? /e agora, José?” (Idem p. 30).
José é mais gauche do que Carlos, ou qualquer outro gauche poetizado por Drummond. É uma invenção mais apurada. No Carlos, do poema do “Poema de Sete Faces”, o poeta se reconhece como gêmeo, mas José está a meio caminho entre ele e o leitor. O “eu” de José é ainda mais retorcido, mais gauche, mais torto, mais sombrio do que o de Carlos. Principalmente, José não tem lastro familiar, não tem sobrenome, não sabe de onde veio nem para onde vai. Tem a chave na mão, mas não existe porta. Quer voltar ao passado, mas o passado secou. Suas alternativas não passam de hipóteses seguidas de reticências, de vazios, do nada. Até a morte lhe é estranha. José é a essência do ser aporético, que não encontra saída nenhuma na vida. É o chamado zero à esquerda, pessoa sem valor, sem nada, niilizado, símbolo de uma era de massificação, época de objetos e de não sujeitos.
José surge em 1942, como parte de Poesias. O poema que dá título ao livro, sintetiza as preocupações básicas do poeta neste momento: a consciência de seu ser-no-mundo e o questionamento do sentido da existência humana.
Através da luta com as palavras, Drummond busca expressar essa conexão eu-mundo. Relação ainda bastante conflitiva, fruto da autonegação, da solidão que invade o artista da palavra, culminando na necessidade de adoção da máscara, José, a persona, por meio de quem fala o ser qualquer.
José é um livro em que o “eu” lírico, desencantado, percebe a sua solidão e a falta de perspectiva que o grande mundo o oferece. O poema “A Bruxa” (Idem p. 28) expõe esse momento de conscientização da solidão do homem no quarto, na América, no mundo: “Nesta cidade do Rio, / de dois milhões de habitantes, / estou sozinho no quarto, / estou sozinho na América. // Estarei mesmo sozinho?/ Ainda há pouco um ruído/ anunciou vida a meu lado. / Certo não é vida humana, / mas é vida. E sinto a bruxa/ presa na zona de luz” (Idem p. 28).
A tomada de consciência da própria condição de solitário leva a construção de um desejo de poetizar sobre a vida, naquilo que ela oferece não de pior, mas de prazer. Daí a necessidade de encontrar um amigo que seja leitor de Horácio, que saiba viver secretamente os prazeres da vida e ser, principalmente, amigo.
Porém, a realidade é um grande beco sem saída, é uma noite de confidências assustadoras, de vozes que ressoam como os gritos da bruxa a atordoar a paz, esperança de ter as mãos dadas com o companheiro e ter fé no futuro. O “eu” lírico é um “José” sem festa, sem minas, sem ouro, sem crença e amigo, um eu todo retorcido marcado por profunda angústia e solidão.
O poema de Drummond é uma flor, uma vida que se contrapõe à náusea da esterilidade dos seres insensíveis e sem essência. “A flor e a Náusea” (Idem p. 36) traduz uma forte carga existencialista.
O existencialismo é uma variante da temática social do livro A Rosa do Povo(1945). As inquietações existenciais de Drummond possuem fortes conexões com o cotidiano da grande cidade, mas também com o passado do poeta. Minas, a família, as ligações afetivas formam a rede sutil dos elementos que lhe fornecem a matéria – prima de suas investigações existenciais, em cujos extremos se localizam dois grandes mistérios, mediados pelo amor – que é sempre amar. A expressão da crise do indivíduo em face de um mundo também todo retorcido é evidenciado em “A flor e Náusea” Idem p. 36): “Preso à minha classe e a algumas roupas, /vou de branco pela rua cinzenta. /Melancolias, mercadorias espreitam-me./Devo seguir até o enjoo?/Posso, sem armas, revoltar-me?//Olhos sujos no relógio da torre:/Não, o tempo não chegou de completa justiça. /O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo podre, o poeta podre/fundem-se no mesmo impasse”. (Idem p. 36)
“A Flor e a Náusea” trazem um olhar reflexivo sobre a própria natureza do poético e a sua função social, por meio de metáforas. Tal reflexão exala perfume e náusea ao mesmo tempo, faz apologia à paz, fala da guerra e dos horrores da humanidade, ressaltando o branco, em oposição ao cinza, para expressar as contradições e dificuldades que a poesia social diariamente enfrenta.
Assim, “A Flor e a Náusea”, flor-poesia, revela a consciência da limitação do poema chamado social e considerado, por muitos, como “poema sujo”, “poesia impura” ou “antipoesia”. A flor-poesia é mal-vista, é considerada maldita, marginal:“nasceu na rua, no asfalto, não possui cor e nem pétalas, sua cor não se percebe. / Suas pétalas não se abrem. / seu nome não está nos livros. / É feia. Mas é realmente uma flor/” (Idem p. 37). Uma flor-poesia-revolução.
A função da arte poética como “Rosa do Povo”, como a poesia que fala do povo, é marcada por dificuldades, por caminhos espinhosos e vida severina. João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, assim poetizou sobre a poesia dita social: “É difícil defender, / só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é / esta que se vê, severina”.(NETO, J. C. M. (1980) p. 112). De fato, é nauseante a ideia de que o poeta pode até defender ou denunciar os problemas da carência humana, mas não pode resolvê-los de forma prática.
Esta circunstância de impotência diante dos problemas da vida provoca enjoo e revolta num poeta que tem dentro de si, um coração maior que o mundo e todos os sentimentos dos homens. Sua vontade é dar um grito de paz através da sua rosa. Este ato é coerente para quem escreveu dizendo “Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918 chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvo / e dou a poucos uma esperança mínima”. (Idem p. 37).
Nesses versos, de “A Flor e a Náusea”, Drummond depõe sobre um curioso episódio de sua vida que, graças a um incidente com um professor de Português, ele seria expulso do colégio Anchieta, em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Tinha Drummond seus 17 anos e nesta ocasião foi acusado de insubordinação mental e anarquista. O jovem, denominado revolucionário, tornou-se um dos maiores poetas da língua portuguesa e o professor de português ficou na história marcado por sua incoerência e insensatez, por sua visão retorcida sobre a educação e sobre o homem.
- Uma Província: Esta
A terra natal, em Drummond, não é apenas a sua Itabira de Mato Dentro – berço do poeta – mas as Minas Gerais com suas cidades históricas, seus espíritos, personagens e cultura. No poema “Prece do Mineiro no Rio” (Idem p. 78).
Carlos Drummond de Andrade realiza essa transfiguração da Terra Natal, em matéria poética: “Espírito de Minas me visita, / e sobre a confusão desta cidade, onde voz e buzina se confundem, / lança teu claro raio ordenador. / Conserva em mim ao menos a metade/ do que eu fui de nascença e a vida esgarça” (Idem p. 78). A vida é a maior fonte de inspiração para este poeta de alma e ofício. Por meio da leitura de todos os mundos, o poema surge poderoso. Sua terra e sua gente foram os primeiros mundos observados. Por isso, a família é antes de tudo tema de sua poesia: desde a figura paterna, passando pela mãe, irmãos, tios e até a preta velha chamada Maria. De sua terra e família nasce o coração maior que o mundo e toda a força evocativa de sentimento, de harmonia e de humanismo compõem essa poética do tempo presente e dos homens presentes.
Nos oito poemas que compõem essa seção, Carlos Drummond de Andrade percorre o “selo de Minas” colado em sua poética e marcando o seu jeito de ver o mundo, de sentir as coisas, de se colocar na vida: “Cidadezinha qualquer” (Idem p. 63), “Romaria” (Idem p. 64), “Confidências do Itabirano” (Idem p. 66), “Evocação Mariana” (Idem p. 67), “Canção da Moça – Fantasma de Belo Horizonte” (Idem p. 68), “Morte de Neco Andrade” (Idem p. 72), “Estampas de Vila Rica” (Idem p. 72), “Prece de Mineiro no Rio” (Idem p. 78).
Através de sua viagem poética, Drummond descreve cubisticamente a história de sua terra natal: a monotonia das cidadezinhas, as festas religiosas, as igrejas, seus anjos tortos, as minas, as estradas de ferro, cidades e suas histórias, os personagens e os fatos que vivenciou ou assistiu, o gado das Minas e do tempo confidenciado no canto de um itabirano: “Alguns anos vivi em Itabira. /Principalmente nasci em Itabira. /Por isso estou triste, orgulhoso: de ferro. /Noventa por cento de ferro nas calçadas. /Oitenta por cento de ferro nas almas. /E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.” (Idem p. 66)
“Confidência do Itabirano” (Idem p.66), a partir do título, já exprime a intenção do autor: falar de sua cidade de origem, que tanto o marcou, e cuja lembrança continua presente em sua vida como uma fotografia na parede.
A herança itabirana é presentificada não só nos objetos que o cercam, mas na sua maneira de ser – a tristeza, o orgulho, o hábito de sofrer – que atribui ao fato de haver nascido e vivido naquele ambiente.
A doce herança itabirana é marcante na obra drummondiana. Livros como Brejo das Almas, Confissões de Minas, Sentimentos do Mundo, Boitempo, Menino Antigo e Esquecer para Lembrar revelam sentimentos para com a terra natal, revolvem o passado na tentativa, talvez, de compreender a sua condição no mundo como homem e como poeta.
Foi através da leitura que o jovem poeta adquiriu informações e desenvolveu reflexões críticas sobre a realidade. Algumas leituras foram decisivas para a formação do Carlos poeta que, de sua Itabira do Mato Dentro, observava o cosmopolitismo da cidade grande ou dos países em evidência. Daí a ironia ao seu mundo interior revelado por “um anjo torto / desses que vivem nas sombras” da timidez e, talvez como o próprio poeta, também um gauche provinciano “sequestrado pela vida besta”, como certa vez observou Mário de Andrade.
É nesse ponto que podemos compreender a veia irônica marcante do poema “Cidadezinha Qualquer” (Idem p. 63), inserido pelo poeta em “Uma Província: Esta” e publicado em Alguma Poesia.
“Cidadezinha Qualquer” (Idem p. 63) é o retrato descritivo da monotonia, da mesmice, da rotina sem perdão das cidades interioranas. É o reflexo de um mundo excêntrico, longe dos grandes centros cosmopolitas. Por isso, o substantivo cidade, no diminutivo, ganha uma carga semântica de inferioridade e pequenez enfatizada ainda pela adjetivação qualquer: isto porque é uma cidadezinha comum, reles, sem qualidades, sem determinação e nem perspectiva, perdida nas Minas Gerais da vida.
Nesse lugar, de “casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras”, fora dos grandes centros, tudo vai reiteradamente devagar: homem, cachorro, burro, coisas, tudo sequestrado por uma vida besta. Essa mansidão faz parar o tempo, o ar e a pontuação: metaforizada já na primeira estrofe do poema, o que pode ser verificada no caos da falta de vírgulas a sugerir um lugar sem lei, sem homem e sem Deus.
“Cidadezinha Qualquer” exprime um espaço solto na existência, uma ausência de ordem e de um mundo primitivo, sem planejamento, que pode ser resumido por meio da locução adverbial “ao deus-dará” que significa à toa, sem governo próprio, descuidado, a reboque, a esmo, ao acaso, devagar, sem visão, ausente do mapa, abandonada, vaziada de ação e movimento.
- A família que me dei
Carlos Drummond de Andrade é um Poeta Maior e, como tal, trabalha temas metafísicos ou políticos, portanto universais. Dessa forma, a família que surge em seus poemas não é necessariamente aquela que ele teve, num memorialismo subjetivo, mas aquela que o tempo, depois de passado, permite conquistar.
Essa família que agora aparece é a representação da vida transformada em matéria de poesia. O “eu” poético que aparece nos textos é uma transfiguração das experiências vividas pelo próprio poeta, mas que traduzem os sentimentos do mundo também. “Retrato de família” (p. 83), “Os bens e o sangue” (Idem p. 86), “infância” (Idem p. 93), “Viagem na família” (Idem p. 94), “Convívio” (Idem p. 98), “Perguntas” (Idem p. 99), “Carta” (Idem p. 102), “A mesa” (Idem p. 104), “Ser” (Idem p. 116) e “A Luís Maurício, infante” (Idem p. 117) são os poemas escolhidos para essa seção que é um abrir de baús / e de lembranças violentas (Idem p. 94), uma “viagem na família” através do poético.
Por intermédio da poesia o “eu” lírico descobre a sua história e compreende o valor da vida. Essa descoberta não é piegas, sentimental, ao contrário, é metafísica e, às vezes, intolerável para o poeta que sente o desejo de abafar o insuportável mau cheiro da memória, como no poema “Resíduo” (Idem p. 320).
Outras vezes, reconhece a dimensão da exemplaridade que este passado tem em sua vida e em sua poesia, como nos poemas “A Mesa” (Idem p. 104) e “Os Bens e o Sangue” (Idem p. 86). No primeiro, surge a vontade louca de recuperar um tempo perdido para sempre: “E não gostavas de festas… / Ó velho, que festa grande / hoje te faria a gente. / E teus filhos que não bebem / e o que gosta de beber, / em torno da mesa larga, / largavam as tristes dietas, / esqueciam seus fricotes, / e tudo era farra honesta / acabando em confidência” (Idem p. 104). No último, podemos observar a voz dos laços familiares que evoca este poeta cantando: “– Ó meu, ó nosso filho de cem anos depois, / que não sabes viver nem conheces os bois/pelos seus nomes tradicionais… nem suas cores/marcadas em padrões eternos desde o Egito”. (p. 92)
A corrente familiar torna-se uma cadeia insuperável e, a despeito das diferenças, está selado pelas leis reunidas num código especial onde predominam “Os bens e o sangue” (Idem p.86). Pela voz dos parentes visitados, negados e nunca esquecidos, ganha som da sentença definitiva dos laços de família.
Os sentimentos se alteram de forma insensata expulsando a possibilidade de qualquer visão mais enfeitada do que pode ter sido a convivência. Viajando através da memória na história da família o “eu” poético reflete: “No deserto de Itabira/a sombra de meu pai/tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido. /Porém nada dizia. /Não era dia nem noite. /Suspiro? Vôo de pássaro? /Porém nada dizia. (Idem p. 94).
O poema “Viagem na Família” (Idem p. 94) é a descrição de uma “viagem patética” que empreende sempre guiado pela misteriosa figura do pai, levando-o como uma muda imagem virgiliana pelo espaço antigo, onde há mortos amontoados, casas em ruínas, ruas, relógios e baús. “No deserto de Itabira/ a sombra de meu pai tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido. / Porém nada dizia. / Não era dia nem noite. /Suspiro? Voo de pássaro? Porém nada dizia. // No deserto de Itabira/a sombra de meu pai /tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido. / Porém nada dizia. /Não era dia nem noite. /Suspiro? Voo de pássaro/ Porém nada dizia”.
Pisando livros e cartas, lá vão os dois, o filho angustiado indagando, o pai silencioso sugerindo mudamente a necessidade de tais roteiros. “Longamente caminhamos. /Aqui havia uma casa. / A montanha era maior. /Tantos mortos amontoados, / o tempo roendo os mortos. /E nas casas em ruína, /desprezo frio, humildade. /Porém nada dizia. […] Pisando livros e cartas, / viajamos na família. Casamentos; hipotecas; os primos tuberculosos; a tia louca; minha avó /traída com as escravas, / rangendo sedas na alcova. / Porém nada dizia”.
A viagem na família apresenta muitos momentos, ora lirismo, recordação marcada por saudades, ora ressentimento: “Vi mágoa, incompreensão/ e mais de uma velha revolta/ a dividir-nos no escuro. / A mão que eu não quis beijar, / o prato que me negaram, / recusa em pedir perdão. / Orgulho. Terror noturno. / Porém nada dizia”.
Drummond de Andrade é um indivíduo que sente e (re)-sente a vida e se recria através da memória. O poeta tenta recuperar o tempo passado, vencer a distância que o separa das terras mineiras e da história de sua família, à medida que percebe que o passado se torna presente, através da herança legada pelos bens e sangue. Carlos Drummond assume a captura do passado que, posteriormente, será desvendado com mais ousadia em Boitempo – Boitempo & A Falta que Ama, Menino Antigo e Esquecer para Lembrar. Nestas obras, voltam às reminiscências da infância e juventude, de sua cidadezinha, dos tempos de colégio, dos primeiros anos em Belo Horizonte.
Nessa seção “A família que me dei”, a construção dessa família é formada por antepassados, imagens reais e fictícias do poeta e, também, personagens desejados como pode ser observado no poema “Ser” (Idem p. 116) que canta em versos um filho inexistente: “O filho que não fiz. /hoje seria homem. /Ele corre na brisa. /sem carne, sem nome. /Às vezes o encontro/num encontro de nuvem. /Apoia em meu ombro/seu ombro nenhum.”(Idem p. 116)
O poema “Ser” enfatiza a sensação de vazio e a impotência diante de certos sonhos. A referência a essa criança não nascida faz pensar em seu primeiro filho, Carlos Flávio, morto momentos após o nascimento, levando o poeta a assinalar anos depois: “Interrogo meu filho, / objetos de ar:/ em que gruta ou concha/ quedas abstratas?” (Idem p. 116).
Esta dor profunda e sentimento de perda foram também matéria de poesia em “O que viveu meia hora” do livro A paixão medida. A imagem da sua paixão sem medida – sua filha Maria Julieta é referida no poema “A mesa” (Idem p. 104) sob as linhas da ternura maior do sentimento de um afeto absoluto, de um pai que morreu apaixonado por essa filha. Na bela passagem deste poema a figura de Julieta ainda menina é pura poesia: “Repara um pouquinho nesta, / no queixo, no olhar, no gesto, / e na consciência profunda/ e na graça menineira, / e dize, depois de tudo, / se não é, entre meus erros, / uma imprevista verdade. / Esta é minha explicação, / meu verso melhor ou único, / meu tudo enchendo meu nada” (Idem p. 112/113). Maria Julieta foi tudo na vida do pai, preencheu os insistentes vazios que seu lado gauche teimava em enfatizar.
Drummond foi um leitor e fazia suas viagens-pela-leitura, para conhecer o mundo e, também, para fugir da “chateação” da terra natal, e por isso dela se afastava para poder colonizar o seu sonho. Carlos Drummond mergulhava em sua viagem-pela-leitura, em sua “dificílima dangerosíssima viagem / de si a si mesmo: / pôr o pé no chão / do seu coração / experimentar / colonizar / civilizar / humanizar / o homem/ descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas/ a perene, insuspeitada alegria/ de com-viver”, como cantou nos versos de “O Homem; As Viagens”, (ANDRADE, 2002, 718) poema inserido no livro As Impurezas do Branco.
Através da leitura o jovem artista descobria o mundo e seus significados, visitava lugares inimagináveis, inventava outros mundos. Harold Bloom em Como e por que ler afirma que para ler bem é preciso ser inventor. (Bloom, H. (2001) p. 18). Drummond foi um grande leitor e inventor e, mais tarde diria, como epígrafe do livro O Corpo (1984) “O problema não é inventar: É ser inventada hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”. (ANDRADE, 2002, p. 1230).
O tema de Robinson Crusoé e da ilha aparece várias vezes na poesia e na prosa de Drummond. Em “Infância”, o “eu” poético descreve seu pai indo e vindo, as negras, o café, a mãe, o irmão mais novos e se põe apartado de todos contemplativamente: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. /Minha mãe ficava sentada cosendo. /Meu irmão pequeno dormia. /Eu sozinho menino entre mangueiras/lia história de Robinson Crusoé/comprida história que não acabava mais.” (Idem p. 93). No final, contrastando sua vida com a obra de ficção: “Eu não sabia que minha história/ era mais bonita que de Robinson Crusoé”.
Esse comportamento gauche é uma variante do conflito do “eu” versus o mundo. A ilha passa a ser o espaço ideal e o continente a dura realidade. A ilha de Drummond é uma espécie de Pasárgada de Manuel Bandeira, um lugar da realização de todos os sonhos impossíveis. A ilha é afinal, como afirmou posteriormente o próprio Drummond: “O refúgio último da liberdade, que em toda parte se busca destruir. Amemos a ilha” (Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 230).
Carlos Drummond de Andrade também sonhou com sua Pasárgada e como disse o próprio poeta, “apartar-se para uma ilha é inaugurar um novo espaço e novo tempo, porque tempo e espaço ordinários lhe são adversos […] há muito sonho essa ilha, se é que não a sonhei sempre”(Op. cit Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 201). Porém, mais amadurecido, no poema “Mundo Grande” confessa: Outrora viajei/ países imaginários, fáceis de habitar, / ilha sem problemas não obstante exaustivas e convocando ao suicídio/ meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem(Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 220).
O primeiro conjunto rítmico de “Infância” (p. 93) apresenta versos marcados por pontos continuados, a metaforizar a monotonia e a vida limitada do pai e da mãe: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé. / Comprida história que não acaba mais” (CDA Idem p. 93).
O último verso encerra esta estrofe com a imagem da comprida história do herói da ilha, para contrapor a imagem da vida limitada dos pais do menino leitor. É o momento em que lia as histórias de ficção; nesse instante a vida não tinha limite e, logo em seguida, no último verso explicita que a história de Robinson Crusoé não tem mesmo conclusão; apesar de numa posição contraditória, concluir a estrofe, com uma percepção realista de que a ficção tem fim também. A vida sim, é mais bela que a literatura, por este motivo os próximos blocos apresentam a realidade viva e poética ao mesmo tempo.
A vida do menino leitor no continente é sinestesicamente iluminada, cheia de canto e perfume do café da manhã, de sua terra, de sua gente, de seus amores infantis. A sua felicidade e a sua história são compridas que não acabam mais. Por último conclui sua narrativa real em dois sonoros blocos rítmicos: “Lá longe meu pai campeava/ no mato sem fim da fazenda. // E eu não sabia que minha história/ era mais bonita que a de Robinson Crusoé.” (p. 94).
“Infância” é um poema em que o artista reflete sua imaturidade por não perceber a grandeza do seu mundo físico e metafísico e, portanto, é uma revelação explícita do seu lado gauche inserido na “Família que me dei”.
- Cantar de amigos
A quarta parte dessa Antologia, Drummond reservou aos seus amigos. Apesar de seu jeito tímido e aparentemente reservado, Carlos Drummond de Andrade, o poeta de um coração maior que o mundo, teve muitos e fiéis amigos. Entre eles, quatro poetas brasileiros: Manuel Bandeira, Américo Facó, Jorge de Lima e Mário de Andrade. Esse último foi seu amigo e confidente, cuja amizade continuou alimentada por correspondência de anos. Sobre esses laços, assim testemunha o próprio Drummond: “As cartas de Mário de Andrade ficaram sendo o acontecimento mais formidável de nossa vida intelectual belo-horizontina. Depois de recebê-las, ficávamos diferentes do que éramos antes. E Diferentes no sentido de mais lúcidos. Quase sempre ele nos matava ilusões, e a morte era tão completa que só podia deixar-nos ofendidos e infelizes. Então reagíamos com injustiças, tolices, o que viesse de momento ao coração envinagrado. Mário recebia essas tolices, mostrava que eram simplesmente tolices, e ficávamos mais amigos... (ANDRADE, C. D. In: Lição do Amigo (1982) p. 27).
Mário de Andrade foi mais do que amigo, foi mestre responsável pela formação do poeta e pelo sentimento do mundo cultuado por Drummond. O poema “Mário de Andrade Desce aos Infernos” (CDA Idem p. 129) é um canto de amizade e reconhecimento pelo modo extraordinário com que Mário de Andrade cantou a poesia, o homem, o Brasil e a cultura em geral: “Daqui a vinte anos farei teu poema/e te cantarei com tal suspiro/que as flores pasmarão, e as abelhas, /confundidas, esvairão seu mel.” (CDA Idem p. 129).
Este poema dedicado ao amigo-poeta “minucioso, implacável, sereno, pulverizado, de tal modo extraordinário que: cabia numa só carta,/ esperava-me na esquina,/ e já um poste depois/ ia descendo o Amazonas,/ tinha coletes de música,/ entre cantares de amigo/ pairava na renda fina / dos Sete Saltos, / na serrania mineira,/ no mangue, no seringal,/ nos mais diversos brasis,/ e para além dos brasis, nas regiões inventadas,/ países a que aspiramos, / fantásticos, / mas certos, inelutáveis, / terra de João invencível, / a rosa do povo aberta…” (CDA Idem. p. 130/131). Estes versos definem e aplaudem o projeto artístico e humano de Mário de Andrade: a pesquisa cerrada da cultura popular, a penetração concreta na vida, na arte e na linguagem do povo brasileiro.
- Na praça de convites
“Na Praça de Convites” tem como temática o choque social, a poesia participante de Sentimento do Mundo (1940), José (1942) e A Rosa do Povo (1945). A preocupação com os problemas sociais marcou a década de 40 na evolução de Carlos Drummond de Andrade. É o período da Segunda Guerra Mundial, da ditadura de Vargas e da difusão de ideias socialistas, capitalistas, existencialistas e freudianas. De um modo geral, tudo isso ecoa nos poemas drummondianos desse período. Paira neles uma atmosfera de medo, incerteza, dúvida e limitações do indivíduo. O “eu” lírico fragmenta-se e retrata uma sociedade igualmente fragmentada.
Drummond jamais fez poesia partidária ou de engajamento político partidário propriamente dito, mas percebe-se em A Rosa do Povo a marca de um intelectual de fortes convicções antiburguesas e marxistas, como fazem pensar os famosos poemas “Nosso Tempo” (CDA Idem p. 160) e “Morte do Leiteiro” (CDA Idem p. 178).
A “Morte do Leiteiro” é uma crônica poética e dramática do cotidiano. O poema apresenta todos os elementos da narrativa: além do narrador, temos personagens, conflito, cenário e tempo: “Há pouco leite no país, / é preciso entregá-lo cedo. / Há muita sede no país, / é preciso entregá-lo cedo”. Estes versos exemplificam, entre muitos na obra do autor, como se pode extrair poesia de um acontecimento da crônica policial: um leiteiro é assassinado na madrugada pelo dono da casa, que o tomou por um ladrão.
Os versos se sucedem com extrema clareza e simplicidade e, no melhor estilo das baladas populares extraídas da vida real, são apresentados os dois personagens: o moço leiteiro e o proprietário. O primeiro é caracterizado com os seguintes versos: “empregado no entreposto; 21 anos; cumpridor de seu dever (sai correndo e distribuindo/ leite bom para gente ruim); mora no último subúrbio”. O segundo é descrito como: preocupado com os ladrões; vive em pânico “(acordou em pânico/ ladrões infestam o bairro)”; está sempre armado (Ladrão? se pega com tiro.); mantém-se acima da polícia (polícia não bota a mão/ nesse filho de meu pai.). Na penúltima estrofe, o verso salva a propriedade, “justifica”, do ponto de vista do assassino, a morte do leiteiro. É uma cena triste, sem luz, sem justiça e sem esperança.
O poeta faz uma oposição entre noite e aurora. A noite é o símbolo da maldade, da ignorância e da injustiça dos homens. A falta de luz alude ao mundo do proprietário, da sociedade capitalista que coloca os valores materiais acima dos valores humanos, do mundo de aparência, da falta da essência, do mundo demasiadamente desumano. Aurora é uma metáfora da esperança, do amanhecer, de uma nova sociedade, que com seu brilho augusto, redimirá as trevas da desumanidade. “Por entre objetos confusos, / mal redimimos da noite, / duas cores se procuram, / suavemente se tocam, / amorosamente se enlaçam, / formando um terceiro tom / a que chamamos aurora”(CDA Idem p. 178).”Nosso tempo” (CDA Idem p. 160) é um poema que reflete literalmente a fragmentação do tempo e dos homens: “Este é tempo de partido,/tempo de homens partidos./Em vão percorremos volumes, /viajamos e nos colorimos./A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua./Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. /As leis não bastam. Os lírios não nascem/da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se/na pedra” […] (CDA Idem p. 160)
“Nosso tempo” é um poema lírico e épico, porque ao falar dos sentimentos, o eu lírico canta, antes de tudo, os sentimentos do mundo; é um poema épico porque constitui um grande painel do horror contemporâneo e traduz toda a história dos tempos modernos com suas adversidades e desejos. A Rosa do Povo é a poesia que emana do desejo do povo, que fala a alma do povo e do caos do mundo. O poeta evoca essa rosa poesia para que todos, juntos, sigam de “Mãos Dadas” (CDA Idem p. 158) anunciando: “Não serei o poeta de um mundo caduco. /Também não cantarei o mundo futuro. /Estou preso à vida e olho meus companheiros. /Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. /Entre eles, considero a enorme realidade. /O presente é tão grande, não nos afastemos. /Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” (CDA Idem p. 158)
Este é um dos mais comentados poemas políticos de todo o Modernismo. É um texto engajado, comprometido, participante, e, ao mesmo tempo, de grande força poética, ritmo intenso e imagens intensas. O tom da fala, a oralidade, a linguagem coloquial muito expressiva, é acentuada pela pulsação livre dos versos que são marcas estilísticas importantes na criação do texto.
Na construção deste poema observa-se a maestria da enumeração de negações – que recusam as variadas formas de escapismos românticos, de fuga da realidade. A estilística da repetição, em especial da palavra presente, carrega ainda mais o texto de alta tensão poética.
Em “Mãos Dadas”, o poeta reafirma sua consciência da existência de outros homens, seus companheiros. Com eles é que se sente de mãos dadas – e renuncia aos seus temas pessoais: “Uma mulher, uma história, os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela”. O eu lírico não mais se refugiará na solidão, porque o que lhe interessa é o tempo presente em que se acha inserido, e os homens que o cercam.
“Os Ombros Suportam o Mundo” (CDA Idem p. 182) é outro poema político e existencial de grande intensidade, representante da poesia social de Drummond, aquela que “o coração é maior, muito maior que o mundo”. Neste texto, o “eu” poético conclui: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos secaram. / […] E o coração está seco” (CDA Idem p. 182).
Este poema está inserido no livro O Sentimento do Mundo (1940). O título do livro se faz presente a partir do momento em que o poeta fala na renúncia dos seus desejos e inquietações pessoais, que só o deixarão na mais absoluta solidão. Não importa sua própria vida, o tempo que passa e a velhice que avança, em face dos problemas do mundo, dos quais ele tem uma dolorosa consciência. Sente-se solidário com os que ainda não se libertaram do sofrimento. Sua vida se impõe como uma ordem: ela deve continuar para enfrentar a realidade de um mundo que ele imagina carregar nos ombros e que não deve pesar mais do que a mão de uma criança.
O Poeta é, antes de tudo, um questionador da realidade conflituosa e do mundo, numa perspectiva antirromântica, antilírica convencional, chamando à vida para o que há por se fazer.
“Os Ombros Suportam o Mundo” é um texto que exemplifica como a linguagem coloquial e as imagens diretas podem ser altamente expressivas, no reconhecimento da necessidade de perceber “que a vida é uma ordem, sem mistificação”(CDA Idem p. 182, sem ilusões vãs, com sobriedade, clareza e desencanto irônico, amargo, embora não resignado.
No poema “Sentimento do Mundo” (CDA Idem p. 154) seu canto ressoa dizendo: “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo, / mas estou cheio de escravos, / minhas lembranças escorrem / e o corpo transige / na confluência do amor”.
O “eu” poético apresenta uma preocupação sócio-política face a época cheia de conflitos: eclosão da Segunda Guerra Mundial, da Guerra Civil espanhola e da ascensão do nazifascismo. O mundo não está apenas desajustado, está fragmentado e caótico.
O poeta sente as dores do mundo e seus versos cantam os sentimentos da humanidade. A poesia é a sua contribuição para minimizar a falta de luz nessa grande noite da guerra e do desamor. O “eu” lírico é uma testemunha e um sujeito ativo que procura contribuir para melhorar, de alguma maneira, os sentimentos desse mundo enlouquecido. Embora, às vezes, tenha a sensação de incapacidade e escreva que: “Quando os corpos passarem, / eu ficarei sozinho/ desfiando a recordação/ do sineiro, da viúva e do microscopista/ que habitavam a barraca/ e não foram encontrados/ ao amanhecer/ / esse amanhecer/ mais noite que a noite” (CDA Idem p. 154-155).
- Amar – amaro
A seção “Amar – amaro” composta por 23 poemas retrata poeticamente as concepções do amor drummondianas. O poeta tematiza a pluralidade do sentimento que liga o homem e a mulher, os problemas das relações humanas, as incertezas, as inconstâncias e os desacertos do amor. Todavia, como o próprio poeta questiona: “Que pode uma criatura senão, / entre criaturas, amar? / amar e esquecer, / amar e malamar, / amar, desamar, amar? / sempre, e até de olhos vidrados, amar”(CDA Idem p.230). O amor é indissociável de certo saber, apresenta-se como enigma e nunca se deixa decifrar inteiramente. O amor suscita o poeta à metáfora da obscuridade (afetiva, intelectiva, existencial), em que se debate ou se tranquiliza. A carga de mistério do sentimento não se assemelha àquela promessa de felicidade arrebatadora com que os românticos sonhavam. O enigma nessa poesia é sintoma de impossibilidade, é sinal de irrealização como pode ser observado em “Entre o Ser e as Coisas” (CDA Idem p. 231): “N’água e na pedra amor deixa gravados/seus hieróglifos e mensagens, suas/verdades mais secretas e mais nuas. /E nem os elementos encantados / sabem do amor que os punge e que é, pungindo, /uma fogueira a arder no dia lindo.”(CDA Idem p. 231).
O amor além de ser um enigma é, antes de tudo, um paradoxo já descrito por Camões como contentamento descontente. Seus poderes são amargos, conduzem o sujeito à destruição, sugerindo o aniquilamento. Por esse motivo o “eu” lírico ironiza essa situação poeticamente em “Amar – amaro” (CDA Idem p. 239):
Por que amou por que a!mou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou soparedsesed
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula ev
idente?
ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
lúgubres de você mesm(o, a)
irm(ã, o) retrato espéculo por que amou?
(CDA Idem p. 239)
O questionamento inicial: “Por que amou por que a!mou” revela uma indagação do “eu” lírico, direcionada a um interlocutor, sobre o porquê o sujeito ter amado, uma vez que tinha conhecimento da complexidade que envolve amor.
O poema é marcado pelo ludismo sígnico e criativo do vocábulo “a!mou”, que pode ser lido, num relance do olhar ou leitura, como “amou”, ou “almou”, (palavra que não existe). No entanto, a letra “a” está adicionada ao ponto de exclamação “!”. Essa configuração sugere que o “a” é abreviatura de amor, seguida de um grito ou som penetrante, simbolizado pelo sinal exclamativo “!”, para expressar emoção, ou surpresa, ou admiração, ou indignação, ou raiva, ou espanto, ou susto, ou exaltação, ou entusiasmo. O “a” pode sugerir ainda o prefixo de origem grega “negação, afastamento, privação, negação, insuficiência ou carência”, enfim, ausência de amor, ou da ação de ter amado, daí o sofrimento. Uma vez que a palavra amor que dizer não à morte; a(mou). Seguindo a história mitológica que Eros ou Cupido quando luta e contra Tânatos (a morte), o amor sempre nega a morte.
No entanto, amor-dor-morte formam um conjunto de fundamental importância na complementação de uma grande paixão. O amor sem a morte não existe. Ama-se mais que a própria vida, morre-se de amor e por amor. Morrer de não morrer, dizia Santa Teresa de Ávila (1515-1582) insistindo no paradoxo de que morrer seria viver. Para a religiosa, morrer pelo amado era viver: “Vivo sem viver em mim/ E tão alta vida espero,/ Que morro por não morrer/ Vivo já fora de mim,/ Depois que morro de amor,/ Porque vivo no Senhor,/ Que me quis só para si./ Meu coração lhe ofereci/ […] Que morro por não morrer./ Esta divina prisão/ Do amor em que hoje vivo,/ Tornou Deus o meu cativo/[…] /Deus meu prisioneiro ver,/Que morro por não morrer”.
Para Bataille, Eros é definido como o impulso, e por isso não se contrapõe a ele, mas o incorpora em sua essência, porque, citando o fenômeno biológico da concepção, que é a base da vida humana, mostra que com a morte do espermatozoide é dada a origem a um novo ser. Daí, a morte se toma vida (cf BATAILLE, G. (1980), p. 120). Vida e morte estão, portanto, na origem da existência erótica e são a oposição entre o caráter contínuo do ser e a descontinuidade dos indivíduos.
Julius Evolas professa que “ao amar e desejar, o homem procura afinal, a confirmação de si próprio, a participação no ser absoluto e na destruição da steresis, privação e da angústia existencial a que ela está ligada” (JULIUS, E. (1976), p. 72). Através do amor, o homem se unifica e se eterniza.
Numa análise psicanalítica, na teoria das pulsões, Sigmund Freud (1893-1895) descreveu antagônicas: a de eros, Eros – uma pulsão com vocação à preservação da vida; e a pulsão de morte, Tânatos – que provocaria à discriminação de tudo o que é vivo, à destruição.
Nessa análise, o amor e ódio, desejo e agressividade, vida e morte, são forças que habitam no ser humano e estão presentes no cotidiano. Essa bipolaridade é o centro dos conflitos psíquicos e sociais que tem como base a interpretação da mitologia grega que narra a história Eros como o deus do amor e Tânatos, como deus da morte.
Numa síntese a respeito de pulsão da morte encontrada na wikipedia, pode ser visto que:
Pulsão de morte (em alemão: Todestrieb), também conhecida como Tânato, é um termo introduzido pelo psicanalista austríaco Sigmund Freud em 1920.Na teoria psicanalítica freudiana clássica, a pulsão de morte é a pulsão em direção à morte e à autodestruição. Foi originalmente proposta por Sabina Spielrein em seu artigo “Destruição como a causa do surgimento” (Die Destruktion als Ursache des Werdens) em 1912, que foi então adotada por Sigmund Freud em 1920 na obra “Além do Princípio do Prazer”. Este conceito foi traduzido como “oposição entre os instintos do ego ou da morte e os instintos sexuais ou de vida”. [Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud usou o plural “pulsões de morte” (Todestriebe) com muito mais frequência do que no singular. A pulsão de morte se opõe a Eros, a tendência à sobrevivência, propagação, sexo e outras pulsões criativas e produtoras de vida. A pulsão de morte às vezes é chamada de “Thanatos” no pensamento pós-freudiano, complementando “Eros”, embora esse termo não tenha sido usado no próprio trabalho de Freud, sendo introduzido por Wilhelm Stekel em 1909 e depois por Paul Federn no contexto atual. Na sua teoria das pulsões Sigmund Freud descreveu duas pulsões antagônicas: Eros, uma pulsão sexual com tendência à preservação da vida, e a pulsão de morte (Tânato) que levaria à segregação de tudo o que é vivo, à destruição. Ambas as pulsões não agem de forma isolada, estão sempre trabalhando em conjunto segundo o princípio de conservação da vida. Como no exemplo de se alimentar, embora haja pulsão de vida presente – sendo a finalidade de se alimentar a manutenção da vida – ela implica-se à pulsão de morte, pois é necessário que se destrua o alimento antes de ingeri-lo. Aí presente um elemento agressivo, de segregação, este se articula à pulsão primeira, como sua necessária contraparte na função geral de conservação. https://pt.wikipedia.org/wiki/Puls%C3%A3o_de_morte
Sobre Eros e Tânatos Freud afirmou que: “nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se dando, não entre pulsões do eu e pulsões sexuais, mas entre pulsões de vida e pulsões de morte” (Freud, 1920, p. 73)
A pulsão de morte está para além do princípio do prazer e do aparelho psíquico. Na visão de Freud, Tânatos simboliza um comportamento autodestrutivo, uma expressão da energia criada pelos instintos de morte. E quando essa energia é remetida para fora e para os outros, é impulsionada como agressão e violência.
Noutra visão, o sinal de explanação está dentro do verbo amar, no pretérito perfeito: “amou” – a!mou. Disposta assim, a palavra “a!mou” insinua que esse amor que passou foi marcado por muitas dores.
Ainda, “a!mou” pode ser visto como um SEMEMA, que, seguindo a ideia de análise componencial de Bernard Pottier. Segundo este linguista francês, o semema é o resultado da soma dos semas que formam o significado global de um lexema. Assim, o semema <cadeira> é o resultado de Sema1 “para sentar”, mais o Sema 2 “com pés”, mais o Sema 3 “com encosto”, mais o Sema 4 “sem braços”: (Cf. LOPES, Edward. 2003, p. 264-267).
Seguindo a visão de Pottier e considerando “a!mou” como semema, teremos: o semema < a!mou > é o resultado de Sema1 ” verbo amar no pretérito; mais o Sema 2 ” sentiu a emoção de amar “, mais o Sema 3 ” exclamou um amor “, mais o Sema 4 ” se entregou de corpo e alma“.
Logo, o Semema < a!mou > = S1 (verbo amar no pretérito) + S2 (sentiu a emoção de amar) + S3 (exclamou um amor) + S4 (se entregou de corpo e alma).
Essa rede de relações acionam a polissemia da palavra poética “a!mou”. Para Rehfeldt “polissemia […] segundo os próprios componentes (poly + sema + ia), é palavra que comporta várias significações” Rehfeldt, 1980, p. 77). E, um significado polissêmico é quando num mesmo significante unem-se vários feixes de semas ou sememas, que se diversificam pelas combinações diferentes de semas. Dessa forma, uma lexia polissêmica é aquela que preserva uma unidade de significado, isto é, a sua unidade é garantida pelo núcleo sêmico comum aos múltiplos setores de semas. Com efeito, esse núcleo sêmico comum é que permite ao falante identificar um único signo linguístico em suas diferentes realizações no discurso. (cf. Para Barbosa 1996 p. 245-249).
O poético é constituído pela plurissignificação, pela polissemia. Ezra Pound instrui que “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. (POUND E. 1990, p. 32).
Diante do exposto, o poético é a explosão de pluralidade de sentidos. O crítico Gilberto Mendonça Teles, afirmou numa entrevista que: Há três mil anos que os poetas vêm definindo a poesia. Para ele a poesia é o que revela o invisível. “Você lê um poema uma vez, na segunda vez, pode descobrir alguma coisa, ou um sentido que não observou ou sentiu na primeira leitura”. (cf. TELES, M. G. Entrevista para PUC TV, 2018)
Ao longo do poema “Amar – amaro”, “eu” lírico que como já afirmei, se dirige a um ser que amou, cometeu erros. Esse interlocutor ou o sujeito da ação de amar, não soube seguir os caminhos perigosos desses sentimentos, “ternos” ou desesperados. Esse indivíduo é marcado pelo gauchismo do poeta, que foge do lado destro e segue sempre pelo lado esquerdo, canhestro; é inseguro no amor, e sem determinação: daí a palavra “desesperados”, está disposta ao avesso, do contrário: ““soparedsesed”.”.
A ironia poética do “eu” lírico segue quando faz outra pergunta: “nesse museu do pardo indiferente/ me diga: mas por que/amar sofrer talvez como se morre/de varíola voluntária vágula ev/idente?”A sonoridade museu do pardo ironicamente alude ao famoso Museu do Prado, um dos mais importantes do mundo, localizado em Madrid, Espanha. Foi construído por Carlos III e inaugurado somente no reinado de Fernando VII. Nele, estão expostas preciosas obras do mundo das artes. Aqui, o “eu” poético lembra que o amor guarda a história da humanidade, é um “museu de tudo”, é a própria história da vida e morte: tudo viu e testemunhou, com indiferença sombria, parda, sem claridade, sem temperamento ou cor definida: museu do pardo indiferente. Sugere também que todos querem viver o amor, conhecê-lo, mesmo correndo o risco de sofrer, de morrer voluntariamente pelo vírus errante do amor, que vagueia invisível e traiçoeiro, embora evidente. No entanto, colocado separadamente nos versos do poema, ev/ idente, sugere que não se identifica de forma tão fácil, não é tão visível, porque é um vírus e se transforma numa virose ou varíola, ameaçadora.
Daí, o “eu” poético retorna a fazer nova inquirição exclamativa, em caixa alta e tudo ligado, numa grande palavra-interrogação: ah PORQUEAMOU/ e se queimou.
Esse tom irônico em torno do desacerto do amor que, como poeta é também um gauche, avesso e cheio de conflito, está retratado no poema “Quadrilha” (CDA p. 193). Esse antológico texto é poema-piada, portanto é carregado de antilirismo, e da ironia amarga e seca sobre os desconcertos do amor, sobre a rede de desencontros e inconstância das relações amorosas. Ironiza ainda, a constante falta de correspondência das cirandas de amores e desgostos. E, um toque especial de humor irônico é enfatizado ao dar um casamento final para Lili, única personagem que não amava ninguém na história.
Construído em versos livres, o poema é dividido em duas partes: na primeira, são observados os caóticos desencontros amorosos de “João que amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém”. Nestes versos só existe o ponto final.
Esses três primeiros versos são construídos com uma oração principal (João amava Teresa) e cinco orações adjetivas. O pronome relativo retoma sempre o objeto da oração anterior e projeta-o como oração que introduz, de maneira a configurar um interminável desencontro, que culmina no nada, na ausência, de ser indicada pelo pronome indefinido ninguém, que encerra o período.
Entre os vários recursos estilísticos, apontados pela crítica, está a poeticidade do primeiro bloco que é acentuado pelo ritmo bem-marcado dos dois primeiros versos que lembra a cadência da quadrilha. O final da dança (que não amava ninguém) tem o ritmo ligeiramente alterado. A metáfora da quadrilha está também no encadeamento das orações do primeiro bloco rítmico e sua estrutura sintática, em que o objeto do verbo é sujeito do verbo seguinte, simbolizando a constante troca de pares da quadrilha.
A segunda parte da dança não tem o ritmo cadenciado da primeira, é escrita de maneira prosaica, é o desfecho da história dessas personagens e, portanto, traduz a ruptura entre o mundo do desejo e o da realidade: “João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili se casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história”. Cada personagem vinculou-se ao seu destino: Longa viagem, convento, morte trágica e física, morte metafísica e trágica (naquela época ficar para titia era morrer tragicamente para o mundo), suicídio e se casar com quem não tinha entrado para a história.
Muitos estudiosos da obra de Drummond chamam atenção para o fato da outra parte da história ser construída com orações coordenadas. Sua única oração subordinada é que não tinha entrado na história. A coordenação indica a não – relação dos fatos expressos pelas orações, o que mostra que as ocorrências na vida das pessoas não guardavam qualquer relação com o que elas desejavam. O verbo ir é intransitivo, concorre para indicar que a ação por ele expressa, não incide sobre nada ou sobre ninguém.
Algumas leituras de “Quadrilha” sustentam que as figuras “ir para os Estados Unidos” e “ir para o convento” remetem ao tema da “evasão espacial”. Nos verbos morrer e ficar, o sujeito é paciente, o que revela que ele não age, mas sofre os acontecimentos. O verbo suicidar-se tem um objeto expresso por pronome reflexivo, mostrando que o ser humano só tem controle sobre as ações que dizem respeito a si mesmo. Suicidar-se remete também ao tema da evasão.
Só o verbo casar indica ação que incide sobre alguém. No entanto, Lili não se casou com uma pessoa (um nome), mas com um sobrenome. Pinto Fernandes é um sobrenome tradicional, o que conota posição, dinheiro. O primeiro sobrenome remete, além disso, à ideia de masculinidade, com toda a carga conotativa que ela possui numa visão estereotipada do casamento tradicional: segurança, apoio, capacidade de liderança.
“Quadrilha” é jogo amoroso que retrata a vida e a arte de compor versos polissêmicos, carregados de sentidos até o máximo grau possível. Mais do que interpretar as possíveis conotações o poema deve ser sentido. “Quadrilha” traduz o amor pela arte da palavra e remete ao leitor comum ou ao crítico especializado, um desejo de descobrir as artes e as manhas desse Amar-amaro drummondiano que sensibiliza e salva a humanidade das dores amargas da ignorância e do desamor.
- Poesia contemplada
“Procura da Poesia” (CDA Idem p. 247) é o poema de Carlos Drummond de Andrade mais analisado pela crítica literária por expressar, por meio da metalinguagem, uma tradução perfeita dos pressupostos teóricos da lírica moderna.
Neste poema, Drummond contempla o ato poético e teoriza com maestria sobre a arte da palavra. Entre as suas orientações, evidencia que não se faz literatura com ideias e sentimentos: O que pensas e sentes isso ainda não é poesia, mas pode vir a ser. É necessário que o eventual assunto do poema (o que pensas e te sentes) encontre a forma de expressão linguística adequada. Mas essa linguística não pode surgir por um trabalho apenas da inteligência: deve nascer espontaneamente da contemplação das palavras. O poeta deve aguardar que as palavras se revelem e, como numa gestação, se unam formas e fundo, dando o nascimento ao poema. Então, sim, o que pensas e sentes se terá transmutado em poesia.
O primeiro segmento de “Procura da Poesia” é todo estruturado pela repetição (anáfora) de frases interrogativas que condenam a busca da poesia por um caminho equivocado, ou seja, confundida com aquilo que “ainda não é poesia”: é apenas o assunto do poema, o mundo físico ou sentimentos individuais entre si. Entre ambos, a poesia e seu eventual assunto, existe o instrumento da arte poética, que é a palavra. Só a palavra organizará o poema. Mas a palavra tem suas características peculiares e suas limitações: “Não faças versos sobre acontecimentos. /Não há criação nem morte perante a poesia. /Diante dela, a vida é um sol estático, /não aquece nem ilumina. /As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. /Não faças poesia com o corpo, / esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. (CDA Idem p. 247)
Pode-se interpretar, à luz do contexto, as proibições de Drummond contidas nessas frases imperativas, marcadas pelo signo do não, da seguinte forma: essas restrições representam uma advertência de Drummond àqueles que pretendem iniciar-se na arte poética. Esta é a lição, para que não se deixe iludir pela presença do mundo físico, dos acontecimentos ou dos sentimentos individuais em si, a ponto de confundi-los com a poesia. A poesia só pode ser descoberta na contemplação das palavras. Elas têm o poder de atuar sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os sentimentos individuais e deles extrair o poético.
O poeta deve mergulhar no reino das palavras, no rio da linguagem e, numa incessante perquirição à procura do poético, chegar às profundezas do discurso, onde tudo é silêncio. O artista chega mais perto e contempla as palavras, então deverá saber decifrá-las, encontrá-las nesse rio da fala, do discurso. O silêncio conduz o indivíduo à sabedoria, à razão, está ligado à retórica. Por meio do silêncio o invisível se revelará, pois a falta de visão inicia a busca da verdade poética, no próprio poema: “Não recomponhas/tua sepultada e merencória infância. /Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. /Que se dissipou, não era poesia. /Que se partiu, cristal não era. (CDA Idem p. 248).
O poeta submerge no reino da linguagem à procura das palavras que estão paralisadas, sem pressa de sair de lá; invade esse reino tentando decifrá-las, pois elas anunciam, tal como a famosa esfinge de Tebas: “Decifra-me ou devoro-te”. O artista deve tomar cada palavra, uma por uma e conhecer a magia de cada uma, com suas múltiplas combinações sintáticas e semânticas; deve percorrer todo o reino e, palmo a palmo, ter conhecimento daquele terreno, pois, se assim não proceder será devorado pelas próprias palavras. Depois, conviver diuturnamente com a linguagem até encontrar a sintaxe invisível do conceito, da melodia do canto poético.
Após descobrir as artes e manhas da poesia e dos mistérios do verdadeiro ouriço que é o poema, o artista cria o texto que não deve, necessariamente, falar do mundo pré-existente. O sentido literário é o fíat, que significa criação.
O mundo físico, os acontecimentos, o corpo, os sentimentos individuais em si, nada disso é ainda poesia. Tudo deve ser recriado, graças ao poder misterioso da palavra, numa nova realidade, em que o mundo se apresente reformulado em termos humanos e o homem se encontre liberto e universalizado (integrado ao mundo). Da nova realidade, só possível pela palavra, surge a poesia.
O poeta deve penetrar surdamente no reino das palavras sem nenhuma ideia preconcebida, humildemente, com atenção e receptividade, buscando a intimidade dos vocábulos, atento a sugestões que deles se desprendem, esperando que as palavras se revelem e mostrem aquela face secreta em que, como num molde, se ajuste à ideia poética.
O reino das palavras implica poder e autonomia. Ora, as palavras são ricas de sentido e potencialidade de comunicação; além disso, possuem aquela face secreta capaz de, unindo forma e fundo, construir o poema. As palavras são independentes do poeta para existir, uma vez que fazem parte do código social, a língua.
O poeta não pode adiantar-se, querendo escolher com a inteligência as palavras que formarão o poema. O que lhe cumpre fazer é, contemplando as palavras, esperar que elas se revelem e extraiam da consciência os elementos poéticos que, com ela fundidos, façam surgir o poema que comunicará a poesia.
Assim, o poder de silêncio é a capacidade que as palavras têm de sozinhas, sem a participação organizada da inteligência do homem, agir como estímulo para extrair do inconsciente o material poético. O poder da palavra é, no poema, a capacidade que o vocábulo possui para comunicar a poesia.
As palavras guardam a impressão, o rastro, o eco, a figura, a face de todas as vivências humanas no mundo. Na verdade, o interior da palavra é o reflexo da alma do homem e do mundo. O ser é manifestado através da linguagem, como afirma Martin Heidegger (1889 – 1976) na obra Carta sobre o humanismo (Über den humanismus) 90, escrita em 1946: A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato de consumara manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam. Não é por ele irradiar um efeito, ou por ser aplicado, que o pensar se transforma em ação. O pensar age enquanto exerce como pensar. […] (HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. 2005, p. 55) De acordo com a sua Essência, a linguagem é a casa do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e disposta a partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da linguagem numa correspondência ao Ser e como uma tal correspondência, isto é, como a morada da Essência do homem”. (Op. cit. 2005 p. 55).
Assim, os poetas são os guardiões da linguagem movimentada pelas palavras, que moram dentro do ser que poeta e que tem o domínio de lutar contra as intempéries da linguagem poética, que não se edifica de repente. O poeta se constrói ao longo de um trabalho diuturno com as palavras, como certifica o poema: “Penetra surdamente no reino das palavras. /Lá estão os poemas que esperam ser escritos. /Estão paralisados, mas não há desespero, /há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. /Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. /Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. /Espera que cada um se realize e consume/com seu poder de palavra/e seu poder de silêncio. /Não forces o poema a desprender-se do limbo. /Não colhas no chão o poema que se perdeu. /Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada/no espaço. /Chega mais perto e contempla as palavras. /Cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra /e te pergunta, sem interesse pela resposta, /pobre ou terrível, que lhe deres:/Trouxeste a chave?” (CDA Idem p. 248-249)
A construção de um texto poético poderia ser comparada a um poliedro de mil faces. Cada face teria a capacidade de comunicar uma ideia ou um sentimento. As faces secretas não se revelam facilmente, a não ser no momento em que o poeta está psicologicamente preparado para receber a mensagem do inconsciente.
Em Trazer a chave significa que o poeta deve apresentar-se psicologicamente preparado para receber a revelação das palavras, sem nenhuma ideia preconcebida, humilde, disposto a receber, atento às sugestões. Caso contrário, não abrirá as portas do “segredo”: as palavras reagirão desfavoravelmente e nada revelarão.
Essas lições de poesia drummondianas levaram muitos críticos a afirmar que o poeta mineiro é o mais importante teórico da moderna poesia brasileira, uma vez que os princípios de sua Poética (é claro, de sua retórica) provêm simultaneamente do mesmo ato criador da poesia. De acordo com Gilberto Mendonça Teles: “A atenção do poeta se torna intransitiva, volta-se para si mesma, observando a criação de dentro para fora, na sua raiz de modo que a linguagem é que se torna objeto da especulação poética. Daí a metalinguagem, o poema sobre o poema, sobre a poesia, sobre a linguagem, sobre a gramática, enfim sobre os elementos do discurso poético. (Teles, G. M. 1989, p. 237).
O poema “O Lutador” (p. 243) é outro exemplo da melhor Poética – retórica do Modernismo. É um metapoema que dá lição da concepção universal da poética moderna, da luta diuturna através do reino das palavras e da descoberta de suas faces secretas e enigmáticas. Ao falar das dificuldades na relação com as palavras, o poeta filosofa sobre a arte poética dizendo: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos / mal rompe a manhã. / São muitas, eu pouco. / Algumas, tão fortes / como o javali. / Não me julgo louco. / Se o fosse, teria / poder de encantá-las.” (CDA Idem p. 243)
A opção por versos curtos estruturando o poema confere ao texto um ritmo de tensão, refletindo o momento de luta que o poema procura captar.
Para escrever poesia não basta ter boa intenção, é preciso mais do que isso: é necessário muita luta, lucidez e uma certa frieza para realizar essa obra de arte.
Em “O Lutador”, Drummond de Andrade desmistifica o conceito de poesia como algo mágico e como tarefa divina. O trabalho poético, na lição do poeta, é uma atividade produtiva, igual a tantas outras na sociedade, é uma luta pelo sustento, daí afirmar: mas lúcido e frio, / apareço e tento / apanhar algumas / para meu sustento / num dia de vida.
“O Lutador” reitera a teoria que Drummond apresenta em “Procura da Poesia”, de que o poeta deve penetrar no reino da palavra através de uma luta corpo a corpo; todo o tempo sem nenhuma ideia pré-concebida, humildemente, com atenção e receptividade, buscando a intimidade das palavras, atento às sugestões que delas se desprendem, esperando que as palavras revelem aquela face secreta em que, como num molde, se ajuste a ideia poética.
Nessa seção denominada “Poesia Contemplada”, além dos poemas “Procura da Poesia” (CDA Idem p. 247) e “O Lutador” (CDA Idem p. 243) que fundamentam as teorias de uma nova Poética e de uma nova Retórica do modernismo brasileiro, Drummond escolheu outras lições importantes: “Brinde no Banquete das Musas” (CDA Idem p. 250), “Poema-Orelha” (CDA Idem p. 252), “Conclusão” (CDA Idem p. 254) e “Oficina Irritada” (CDA Idem p. 251).
Em “Oficina Irritada” o poeta expõe: “eu quero compor um soneto duro / como poeta algum ousara escrever. / eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler”. Este poema é um exemplo da fase neoclassizante de Drummond que adere às normas fixas, como soneto e o recurso à chamada “expressão nobre” do clássico, filosófico e perfeccionista. Essa adesão foi vista com certo azedume pelos críticos de vanguarda. Por outro lado, foi bem recebida pelos críticos em geral e pelo grande número de admiradores da poesia de Carlos Drummond de Andrade.
- Uma, duas argolinhas
Esta seção “Uma, duas argolinhas” corresponde aos exercícios lúdicos. Os poemas escolhidos por Drummond para esta parte foram: “Sinal de Apito” (CDA Idem p. 257), “Política Literária” (CDA Idem p. 258), “Os Materiais da Vida” (CDA Idem p. 259), “Áporo” (CDA Idem p. 260) e “Caso Pluvioso” (CDA Idem p. 261).
O poema “Sinal de Apito” (CDA Idem p. 257), publicado no livro Alguma Poesia (1930), explana a marca da renovação literária de 1922 e incorpora o humor e o tom de piada do primeiro período do Modernismo brasileiro que marcou influência na poesia drummondiana da primeira fase: Um silvo breve: “Atenção siga. / Dois silvos breves: Pare / Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna. / Um silvo longo: Diminua a marcha. / Um silvo longo e breve: Motorista a postos” (CDA Idem p. 257).
Estes versos além de assinalarem a rebeldia às formas de versificar consagradas até então, buscam uma linguagem direta, pessoal, mas tangenciando o “poema-piada” posto em voga pelos modernistas, num jogo poético marcado por ironia, humor, ideias, ação e, antes de tudo, criação.
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- A Tentativa de exploração e de interpretação do estar no mundo
Em “Especulações em “Torno da Palavra Homem” (CDA Idem p. 295) o poeta questiona: Que milagre é o homem? / Que sonho, que sombra? / Mas existe o homem? O “eu” poético apresenta uma inquietação em consequência do momento da autoanálise e do mergulho metafísico em torno da sua história, do seu passado, do caminho para o entendimento da própria existência.
Nos 28 poemas escolhidos por Drummond para essa parte da Antologia denominada “Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” o autor busca entendimento sobre o sentido da vida e do homem, ao mesmo tempo que filosofa sobre a própria linguagem poética e seu Claro Enigma(1951).
A poesia filosófica de Carlos Drummond de Andrade reflete sobre temas universais de caráter metafísico como: vida, morte, tempo, velhice, amor, além, é claro, dos temas sempre presentes, como a família, a infância e a própria poesia.
O pessimismo com que esses temas são abordados chega a ser maior do que a fase inicial do poeta, denominada de gauche; é um pessimismo corrosivo, ácido, uma vez que esperança de um tempo de harmonia e homens presentes já se frustrou.
O desejo de autoconhecimento, que guiava o poeta através das sete faces daquele poema de abertura Alguma Poesia (1930), mantém-se e as cenas da vida vão sendo projetadas numa tela imaginária que a poesia focaliza.
O cultivado hábito de se auto admirar não significa necessariamente um engano: o poeta jamais perde a consciência da relatividade de tudo, inclusive da sua própria capacidade de investigar as coisas. Por isso, muitas ilusões se perdem e mesmo a madureza, que poderia trazer alguma quietude, é vista sobe outro ângulo.
O poema “A Ingaia Ciência” (CDA Idem p. 316) ilustra essa tendência filosófica e ao mesmo tempo classicizante de Drummond: A madureza, esse terrível prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo sabor gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma estela. (A expressão “ingaia ciência”: neologismo criado pelo autor a partir da negação de gaia ciência, arte de poetar entre os provençais da Idade Média.
O filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 -1900) também escreveu um livro intitulado A Gaia Ciência (traduzida também com Alegre Sabedoria, ou Ciência Gaiata (Die fröhliche Wissenschaft, 1882), no qual o pensador reflete sobre questões como a moral, a necessidade de crença, o sentimento de potência etc.).
Este poema evidencia que associado à noção de maturidade, o poeta assume o exercício da memória, buscando, através dela, conquistar a compreensão das coisas que o atormentam: os problemas da família, as angústias que trouxe da terra, a perplexidade diante do amor. E se mostra convicto da inviabilidade do mundo gauche com seus avessos.
Entretanto, foi esse avesso do avesso que nos legou o polêmico “No Meio do Caminho” (CDA Idem p. 267). Sobre esses versos Drummond afirma: Sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais. (Op. Cit. Andrade, C. A. In: Coutinho, A. (1964) p. 525).
“No Meio do Caminho” causou grande escândalo e muita divergência quando publicado e, mesmo depois, a tal ponto que o próprio poeta organizou, em 1968, uma antologia, Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema, onde reuniu tudo que se publicou a respeito, ou se fez, parodiando seus versos.
O poema “No Meio do Caminho”, sem dúvida, fez história no Modernismo como o mais polêmico texto poético, construído através de uma estrutura revolucionária, de caráter aparentemente irônico e caótico para os leitores mais desavisados. A arte é estranhamento e, é também, na concepção de Ezra Pound novidade que permanece novidade. (Pound, E. (1990) p. 32). “No Meio do Caminho” foi essa novidade estranha e poética formada por versos que se repetem, circulares, em torno da pedra: No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra.
Uma leitura inocente leria apenas uma frase que vai até a pedra e volta (no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho). No entanto, tal leitura não passa da mais pura insensatez, porque o texto sugere muitas interpretações, menos esta visão denotativa e direta da frase. A organização sintática e cheia de repetição é o fíat, isto é, a maior criação do poema.
O poema é, antes de tudo, literatura e, como tal, é linguagem carregado de conotação ou de sentido figurado, portanto difere da linguagem denotativa, porque sua função não é só comunicar, mas também expressar emoções particulares do autor, ser original.
A famosa “pedra” no meio do caminho pode significar inúmeras coisas: pedra mesmo, no sentido abstrato e restrito do dicionário; dificuldade, o que atrapalha; coisa marcante, duradoura, eterna; coisa que corta pétrea e, enfim, um mundo de significações.
Entre os vários recursos de estilo utilizados por Drummond neste genial poema, vários críticos literários realçam a caprichosa disposição das palavras em cada verso. Estudiosos da obra drummondiana enfatizam a colocação estratégica da palavra “pedra”. Apontam que sobre a sílaba tônica “pé” se descarrega o ímpeto do fluxo rítmico e sonoro crescente formado pela sequência de nasais envolvendo e arrastando sons vocálicos fechados.
O dinamismo desse movimento imita o ritmo e o rumor de sucessivos golpes de martelo. A pedra, símbolo da dificuldade para a expressão poética, é que recebe as investidas. O primeiro verso corresponde à primeira martelada, desferida por quem ainda está excessivamente confiante ou ainda não percebeu a dureza da pedra; assim, revela-se inútil. Então se sucede a segunda martelada, desferida com maior violência, mas que patenteia, no recuo do martelo (observe-se a colocação da palavra “pedra” no meio do verso), a impotência do golpe; a terceira, breve, de preparação talvez para novo ímpeto, pode representar a concentração das forças mirando alvo bem determinado (o verso é curto, seguido de uma espécie de pausa ou silêncio de atenção concentrada); a quarta e última confirma definitivamente a invulnerabilidade da pedra e o despreparo do que descarregou os golpes.
E a mensagem – a dificuldade do poeta em penetrar no reino das palavras – encontra-se esclarecida nos versos que seguem: o poeta humildemente confessa que jamais se esquecerá da experiência difícil que teve com as palavras no início de sua atividade de artista (com certeza ainda não se julgava psicologicamente preparado, ainda não tinha “trazida a chave…”).
Esta é uma interpretação coerente, por outro lado, a arte traz a marca do enigma e as marteladas doloridas e sonoras das dificuldades labirínticas da vida. “No Meio do Caminho tem uma Pedra” expressa toda a pluralidade de imagens e sentidos que o texto artístico metaforiza, com uma simplicidade singular.
Carlos Drummond demonstrou também que o belo e o poético residem basicamente na criatividade, não precisam da retórica e da técnica do poeta-escultor como defendiam os parnasianos.
Nesse sentido, pode-se interpretá-lo como uma crítica às teorias passadistas, que comparavam a criação do artista da palavra, com o trabalho do ourives com seus martelos e suas pedras preciosas lapidadas, como enfatizou Olavo Bilac no poema “Profissão de fé”. Entre o poeta e o artesão tinha uma pedra no meio do caminho, uma vez que, se o segundo buscava a perfeição e a cópia fiel de uma realidade, o primeiro deveria tem como meta a criação de um mundo cheio de significados.
No meio do caminho tinha uma pedra é um verso que se repete circularmente, como as situações da vida: más e boas. Já foi dito que se os versos iniciais formam um crescendo de intensidade, os finais retrocedem, num minuendo (o oitavo repete o terceiro; o nono, o segundo; o décimo, o primeiro), sugerindo ritmicamente o eco, a lembrança da luta que volta a seu lugar na memória.
Ora, vida é um círculo contínuo e os acontecimentos são marcados na memória: das retinas tão fatigadas. Memória é a capacidade de voltar no tempo. O vocábulo repetir vem do latim repetitione e deriva, segundo a etimologia, do verbo latino petere, que significa procurar, e buscar de novo, procurar uma vez mais, esforçar-se por alcançar de novo.
Affonso Romano de Sant’Anna analisando a obra de Drummond escreve que memória é re-sentir. O ato de repetir é basicamente uma atitude contra o tempo, necessidade de fixar a essência do que passou e reexperimentar sensações do prazer antigo diante do desconforto do tempo presente. (Op. Cit Sant’Anna, A. R. (1980) p. 201). Memória é a tentativa de reviver um momento, recordar os acontecimentos que de alguma forma marcaram nossa vida. Heidegger assinala que: “Investigar: o que há com o Ser? – não significa nada menos do que re-petir o princípio de nossa existência espiritual-Histórica, a fim de transformá-lo em um outro princípio […] Um princípio, porém, não se re-pete, voltando para ele como algo de outros tempos e hoje já conhecido, que meramente se deve imitar. Um princípio se re-pete, deixando-se que ele principie de novo, de modo originário, com tudo o que um verdadeiro princípio traz consigo de estranho, obscuro e incerto”. (Heidegger, A. R. 1987, p. 65).
Recordar é a reiteração desejada de momentos importantes da existência. Alguns críticos estudaram a repetição drummondiana, entre eles Antônio Houaiss e Emanuel Moraes e, de forma singular, Gilberto Mendonça Teles, com a sua obra Drummond a Estilística da Repetição. Nesta obra, o poeta-crítico assinala que a repetição é uma constante na poética do criador de “No Meio do Caminho” e se verifica tanto na estrutura formal (versos, rimas etc.), quanto nos mínimos fonemas. Gilberto Mendonça Teles defende que a repetição parece originar-se dessa ânsia de superação do indizível. (Teles, G. M. 1976, p. 35).
“No meio do caminho” apesar de ser um retrato irônico e antilírico da vida, demonstra uma verossimilhança que sangra a realidade com suas pedras sonoras e, por meio de metáforas, diz o indizível e desperta o homem para sua humanidade adormecida.
Se o poema tem uma tonalidade avessa, torta, gauche, meio caótica e repetitiva, tem os tons da vida, que nem sempre são claros, coloridos e belos. “No Meio do Caminho” traduz os sentimentos do mundo que o poeta posteriormente vai falar através da misteriosa voz de seus poemas, porque como definiu Otávio Paz em O Arco e a Lira a criação poética é um mistério porque consiste em falar dos deuses pela boca humana. (Paz, O. 1982 p. 196).
- Suplemento
Esta Antologia Poética é finalizada com a seção denominada “Suplemento” composto por 15 poemas que trazem lições de vida e de coisas. Nesses textos Carlos Drummond de Andrade retoma elementos de sua poética como as raízes de seu ser, a própria história, as contradições do amor, o estar no mundo e até mesmo as questões sociais como a paz, como no poema “Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz” (CDA Idem p. 368).
O poema “O Relógio” (CDA Idem p. 344) marca as batidas da poética deste poeta maior que, com ironia e lirismo, expõe sua visão crítica do homem e sua inquietação diante da vida: Nenhum igual àquele. / A hora no bolso do colete é furtiva, / a hora na parede da sala é calma, / a hora na incidência da luz é silenciosa. / Mas a hora no relógio da Matriz é grave / como a consciência / E repete. Repete.
Nesta Antologia, o autor – privilegiado autor leitor de sua obra – apresentou-nos aqueles poemas que ele considerar os principais núcleos de sua poesia e, como afirmou, “algumas caberiam talvez em outra seção que não a escolhida, ou em mais de uma. A razão da escolha está na tônica da composição, ou no engano do autor”. (Op. cit Andrade C. D. (2001) p. 17). O certo é que Drummond conduz o leitor numa viagem cujo destino é, sem dúvida, o maior conhecimento do perfil da obra de um dos maiores poetas da Língua Portuguesa.
- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – POESIA EIS A RAZÃO DE TUDO.
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, a 31 de outubro de 1902, filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e D. Julieta Augusta Drummond de Andrade.
Fez os estudos primários em Itabira e secundários em Belo Horizonte e Nova Friburgo. Aos 13 anos de idade já pertencia ao Grêmio Dramático e Literário Artur Azevedo, de sua Cidade natal, e aí pronunciou uma conferência. Suas tendências literárias aparecem cedo, já no Grupo Escolar Coronel José Batista, onde esteve inicialmente.
Ainda adolescente, começou a colaborar em jornais e revistas de Belo Horizonte e do Rio. Em 1916 matriculou-se no Colégio Arnaldo, de Belo Horizonte, onde conheceu Gustavo Capanema e Afonso Arinos, que continuariam a ser, pela vida afora, dois de seus grandes amigos.
Em 1925, funda, com Martins de Almeida e Emílio Moura, A Revista que desde o primeiro número se tornou órgão representativo do Modernismo em Minas Gerais.
Nesse mesmo ano, o poeta casa-se com dona Dolores Dutra de Morais e conclui o curso de Farmácia. Contudo, desinteressado da profissão de farmacêutico, inadaptado à vida de fazendeiro, leciona português e Geografia no Ginásio Sul-Americano de Itabira.
Mas não é ainda a carreira do magistério que o atrai. Por iniciativa de Alberto Campos, Drummond volta a Belo Horizonte, para ocupar o cargo de redator e, logo em seguida, o de redator-chefe do Diário de Minas. Itabira se tornaria, agora, apenas lembrança… uma fotografia na parede. / Mas como dói!
Vive, então, a alegria da paternidade misturada à dor. Seu primeiro filho, Carlos Flávio, morre momentos após o nascimento, levando o poeta a assinalar anos depois: Interrogo meu filho, / objeto de ar: / em que gruta ou concha / quedas abstratas?
Em 1928, nasce sua filha, Maria Julieta; é ainda neste mesmo ano que o poeta se torna “pedra de escândalo”, quando a Revista Antropofágica, de São Paulo, publica, em julho, seu poema “No Meio do Caminho”. Diz o cronista, falando do poeta: (…) sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais (…)
A partir de l930, com alguma poesia, o poeta mineiro inicia a publicação de uma das maiores Obras Poéticas da Literatura Brasileira, em extensão e labor artístico. Publicou acerca de vinte e oito livros de poemas em vida e uma obra póstuma. Além de poeta, Drummond foi admirável prosador (contista). Entre 1944, com a publicação de Confissões de Minas, até 1987 com Moça Deitada na Grama, lança dezesseis livros de crônicas, além de duas obras de literatura infantil, uma charge brasileira intitulada O Pipoqueiro da Esquina (1981) em parceria com Ziraldo. (Andrade, Carlos Drummond de; Pinto, Ziraldo Alves – O Pipoqueiro da esquina. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. 111 pp. Brochura conservada, charges brasileiras; ilustrações do Ziraldo.)
Entre 1979 e 1981, Carlos Drummond de Andrade publicou em sua coluna no caderno B do Jornal do Brasil as famosas “pipocas”, nome que dera a seus chistes, frases-relâmpagos cheias de humor que retratavam criticamente o país. Admirador e amigo de Drummond, o artista, escritor e jornalista Ziraldo percebeu que as sátiras das “pipocas” à vida brasileira eram potencialmente charges – faltavam apenas os desenhos que se associassem às palavras. Ziraldo disse isso ao poeta, que, entusiasta do trabalho de seu conterrâneo, concordou com o convite que se seguiu: juntassem palavra e traço. Surgiria, a seguir, “O pipoqueiro da esquina”, publicado pela Codecri em 1981, livro no qual várias “pipocas” ou chistes retratam um país sempre desconcertante e desconcertado. O que reitera a atualidade de Drummond. Os chistes e as ilustrações das charges de Ziraldo expressam o Brasil do agora. Assim comprova a visão aristotélica sobre o historiador e o poeta em Poética, quando prescreveu que a poesia (arte) é superior à história porque é mais filosófica, mais séria e mais universal, pois o artista atribui a um indivíduo de determinada natureza pensamento e ações, por liame, e transfigura realidades. O historiador, ao escrever a história de uma pessoa, narra sua vida em particular e de acordo com a conveniência (Aristóteles, 1987, p.209). O artista é um filósofo-criador.
Assim, Aristóteles define que a diferença entre Heródoto e Homero é que o historiador conta os fatos que sucederam e o poeta narra os fatos que poderiam acontecer. Portanto, o artista da palavra é mais filosófico e mais sério do que o cientista, uma vez que o texto do poeta se refere ao universal, (dotando às suas personagens naturezas, pensamentos e ações a um liame de necessidade e verossimilhança) e o historiador narra fatos particulares, acontecidos, que são registrados a partir da versão teórica – científica do cronista da história de um povo.
A narrativa do poeta (do artista da palavra) funciona como um “ritual” ou a imitação da ação humana como um todo, e não simplesmente como uma mímesis praxeosou imitação de uma ação, traduz um mito. Assim, o conceito de mito advém de sua relação originária com o enredo da narrativa (mythos), extraído dos componentes da poesia codificada por Aristóteles, ligado ao sentido primitivo de “trama” e que passou a significar crescentemente “narração”, acompanhando uma propensão da narrativa de passar de uma “ênfase ficcional” primitiva para uma tendência “temática” posterior.
Diferente do sentido comum e sobrenatural: uma tendência para narrar uma estória que é originalmente uma estória a respeito de personagens que podem fazer qualquer coisa (Ricouer, (1994, p.80).
Assim reitero que, como já afirmei anteriormente, literatura, portanto, é ficção – palavra latina que significa “fazer”, “moldar” e ainda “fingir”, “imaginar”, portanto, é criação e enigma. Por isso, o texto artístico traz em si o enigma da Esfinge, “decifra-me ou te devoro”. Além do caráter enigmático, a arte literária é em si um paradoxo, uma vez que mesmo fazendo referência a alguma realidade é, antes de tudo, criação e não quer expressar necessariamente nenhum mundo preexistente. No entanto, a arte de Drummond é eterna porque é sugestão e ao mesmo tempo transfigura o real, sua poesia é plural, pois que expressa uma realidade do passado, do presente, do agora e do futuro com arte, humor e antes, de tudo, poesia.
A importância de sua obra completa de Drummond pode ser avaliada pelas palavras de Otto Maria Carpeaux, na Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, Editora Letras e Artes, 1964, p. 298:
“A bibliografia sobre Carlos Drummond de Andrade é muito numerosa. Nenhum outro poeta moderno provocou discussão tão apaixonada, seja dos admiradores que lhe interpretam de maneira diferente a poesia, seja dos ‘conservadores’ que o escolheram como alvo de ataques: discussões que não passam de sintomas da forte influência exercida pela originalidade e personalidade do poeta, hoje quase geralmente reconhecido como o maior do Brasil”. (CARPEAUX, O. M., 1964, p. 298)
No dia 17 de agosto de 1987, dois meses antes do aniversário de 85 anos, por insuficiência cardiorrespiratória, morre o Poeta Maior Carlos Drummond de Andrade. Todavia, o seu coração maior que o mundo continua a bater através da sua divina obra que é eterna e sempre traduz uma novidade que permanece novidade: na tendência, no material, no procedimento, nas temáticas, nas lições das coisas da vida e, principalmente, na arte poética deste poeta de alma e ofício.
- A POESIA DE 30
Drummond pertence ao segundo tempo do Modernismo brasileiro, fase que amadurece as propostas de 22, através da criação de uma expressão verdadeiramente brasileira, sem deixar de ser universal. Ou melhor, essa fase integra sabiamente nossa expressão poética ao sistema contemporâneo ocidental. Abranda-se o entusiasmo por nossas particularidades exóticas de país tropical. O Brasil passa a ser encarado como uma parcela do Ocidente, o que, de fato, coincide com nossa condição de povo formado sob o influxo dominante da civilização europeia. Não são esquecidas as influências da cultura negra, mas sente-se mais o peso do Capitalismo, do Marxismo, do Existencialismo e da Psicanálise. Além da voz dominante de Drummond, participaram desse processo poetas como Murilo Mendes, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Jorge de Lima, entre outros.
- A ANTOLOGIA POÉTICA DRUMMOND
A Antologia Poética de Drummond contém os dez melhores livros da poesia desse poeta maior. Foi editado pela primeira vez, com o título de Reunião, em 1969, pela livraria José Olympio Editora, quando poeta tinha 67 anos. O título Reuniãoe o próprio volume foram concebidos provisoriamente, porque o poeta pretendia ampliar o volume e alterar o título à medida que fosse escrevendo novos livros. Isso vinha acontecendo sistematicamente com as edições conjuntas de suas poesias e tornou a acontecer em 1983, quando Reunião foi acrescida de nove livros e reeditado com o nome de Nova Reunião– Nove livros de Poesia, e posteriormente o subtítulo denominado Dez Livros de Poesia: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José (1942), A Rosa do Povo (1945), Novos Poemas (1948), Claro Enigma (1951), Fazendeiros do Ar (1954), A Vida Passada a Limpo (1959) e Lição de Coisas (1962).
Ao organizar a sua Antologia Poética, em 1962, Drummond optou por apresentá-la em certos núcleos temáticos, que seriam, segundo suas próprias palavras, “certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto. A Antologia lhe pareceu assim mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais fiel. Escolhidos e agrupados os poemas sob esse critério, resultou uma Antologia que não segue a divisão por livros nem obedece a cronologia rigorosa”. (Op. cit. ANDRADE C. D. (2002) p. 17). Desta forma, o autor ainda afirma que não selecionou os poemas pela “qualidade nem pelas fases que acaso se observam em sua carreira poética. Cuidou antes de localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que acondicionam e definem, em conjunto”. (ANDRADE C. D. (2002) p. 17).
Os temas e as respectivas seções são os seguintes: O indivíduo (Um eu todo retorcido), a terra natal (Uma província: esta), a família (A família que me dei), amigos (Cantar de amigos), o choque social (Na praça de convites), o conhecimento amoroso (Amar-amaro), a própria poesia (Poesia contemplada), exercícios lúdicos (Uma, duas argolinhas), uma visão, ou tentativa de exploração e de interpretação da existência (Tentativa de exploração e interpretação do estar-no-mundo), outros temas (Suplemento).
Não é difícil perceber que todos esses temas estão estreitamente interligados. O indivíduo surge de uma família numa terra qualquer. Cresce. Faz amigos e frequenta a praça, onde amplia suas relações e conhece a política e o amor. Então, descobre a poesia, na qual tanto se adestra que chega a brincar com as palavras e compõe opinião sobre as coisas, o mundo e a existência.
Como se vê, os oito últimos temas da Antologia Poética de Carlos Drummond de Andradenão passam de variações ou projeções do primeiro – o indivíduo. Assim, deve ser lida como uma espécie de unipoema, no qual se condensa uma das grandes biografias espirituais deste século, a do mineiro Carlos Drummond de Andrade.
2.1. Um eu todo retorcido
A poesia é a arte que se manifesta pela palavra e o seu objeto é o reino mágico e infinito do espírito. A poesia é a comunicação, a expressão do “eu” do artista por meio do signo literário, isto é, da palavra plurissignificante e da metáfora. Através deste “eu” o poeta vê o mundo e simultaneamente volta para si próprio, numa atitude contemplativa e filosófica. Porém, o filósofo contempla o mundo exterior, ideias gerais, objetivas, universais. Contempla também o mundo interior, ideias particulares, subjetivas, dentro dos seus limites pessoais. No entanto, paradoxalmente, ao contemplar o próprio reino, o poeta descobre o mundo inteiro.
O artista da palavra dirige-se, pois, para dentro de seu mundo interior, à procura daquilo que o revela, enquanto ser dotado de fantasia criadora e vivências. Porém, no reflexo da própria imagem, o poeta vê o sentimento do mundo refletido nas águas da vida. Desta forma, os mundos subjetivos e objetivo aderem-se, imbricam-se, formando uma só entidade subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, retratando a vida, com a predominância do primeiro. A poesia é a revelação espiritual da vida, revela o mundo e cria outro, o poético.
A poética de Carlos Drummond de Andrade exercita esse imbricamento entre os mundos subjetivos e objetivo, entre o “eu” e o mundo exterior. No entanto, logo nas primeiras obras pode ser observado um conflito entre o eu versus o mundo. Ao contemplar as águas da vida, viu imagens de um indivíduo desajustado, marginalizado, à esquerda dos acontecimentos, portanto um gauche: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. (Idem p. 21). Gauche é um adjetivo francês que, no caso, significa “sem jeito”, de esquerda, às avessas, tímido; é também postura peculiar ao poeta em face de si e do mundo. Caracteriza ainda o contínuo desajustamento entre a sua realidade e realidade exterior. Há uma crise entre sujeito e objeto que, ao invés de interagirem e se completarem, terminam por se opor conflituosamente.
O “Poema de Sete Faces” (Idem p. 21) abre Alguma Poesia(1930), a primeira obra publicada de Drummond. Neste poema o tema do gauchismo é apresentado pela primeira vez e contém uma síntese de vários aspectos que caracterizarão a obra do autor no futuro. O poema apresenta sete estrofes que, aparentemente, nada têm a ver em si. Porém, sete é um número mágico, alquímico, simboliza, entre outras coisas, a arte e a perfeição.
Por meio das “sete faces” /estrofes, o poeta exprime sua solidão ante as coisas e as pessoas que o cercam. Fora de si mesmo a realidade nada lhe diz senão que está sozinho com sua timidez e sua falta de jeito para viver, que lhe veio de nascença. Não fosse a inquietação dos homens, a vida seria mais bela. De súbito, o poeta faz um comovido apelo a Deus, nascido da consciência da sua própria fraqueza. Diante dela o mundo lhe parece vasto e o “eu” poético não vê a possibilidade de se fazer entender, mesmo apelando ironicamente para uma rima como solução. No entanto, ele sabe que vasto também é o sentimento que carrega em seu coração. Para contê-lo, apela para um recurso típico da sua maneira de ser, na última estrofe, atribuindo sua emoção à bebida e a beleza da lua.
O gauchismo do “eu” lírico é anunciado por “Um Anjo Torto”: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”(Idem p. 21). Os anjos são comuns nas histórias religiosas, como é o caso do anjo Gabriel, que ordena a José que fuja de Jerusalém com o menino Jesus. Os anjos bíblicos, geralmente, são bons, prenunciam coisas boas e auxiliam as pessoas a encontrar melhor caminho; enfim, são anjos de luz, numa primeira leitura da possibilidade sêmica do texto. O anjo que aparece ao “eu” lírico é o contrário da imagem religiosa: é “torto”, vive “na sombra”, tem um olhar incerto, expressão enigmática e irônica. É um anjo barroco, como aqueles das igrejas mineiras, marcados por mistérios, contradições e linhas que oscilam entre o bem e o mal. É esta figura cheia de estranhamento que prediz o futuro gauche do poeta e, é este o momento que a arte adquire forma, voz, ação e revela suas sete faces ao grande poeta Carlos Drummond de Andrade.
Fazendo uma interpretação simples, poderíamos dizer que o “eu lírico”, diante do sombrio anúncio, vê o mundo vazio e superficial e as relações humanas parecem ser mediadas apenas pelo desejo: “As casas espiam os homens/ que correm atrás de mulheres. / À tarde talvez fosse azul, / não houvesse tantos desejos” (Idem p. 21). Porém, foi por meio do verbo anunciado que o nosso artista descobriu a palavra poética e seguiu seu caminho de sons, vocábulos, imagens, alquimia e a marca do humano. A partir instante descoberta do poético, o artista da palavra fez da rima, não uma solução, mas uma ponte entre o homem e sua própria humanidade perdida na falta de sensibilidade e arrogância.
Drummond traz na alma os sentimentos deste mundo que é mais gauche do que o escritor. Este artista, apesar de demonstrar um aparente “orgulho” e introspecção, traduziu sempre o sentimento mais nobre que existe no mundo: o amor ao próximo e fez de sua poesia a sua vitória verbal, ao explanar nas sete faces da palavra poética, todo o lirismo que o mundo precisava possuir.
Este sentimento de solidariedade do autor se estende ao homem do povo chamado “José” (Idem p. 30). Esse personagem pode ser uma encarnação do próprio poeta, mas também a do ser humano, do seu semelhante, que sofre todas as dificuldades e decepções desta vida, mas continua a viver com obstinação, apesar de não ter nenhuma perspectiva, nem mesmo para onde ir: “E agora, José? /A festa acabou, /a luz apagou, /o povo sumiu, / a noite esfriou, /e agora, José? /e agora, você? /você que é sem nome, /que zomba dos outros, /você que faz versos, /que ama, protesta? /e agora, José?” (Idem p. 30).
José é mais gauche do que Carlos, ou qualquer outro gauche poetizado por Drummond. É uma invenção mais apurada. No Carlos, do poema do “Poema de Sete Faces”, o poeta se reconhece como gêmeo, mas José está a meio caminho entre ele e o leitor. O “eu” de José é ainda mais retorcido, mais gauche, mais torto, mais sombrio do que o de Carlos. Principalmente, José não tem lastro familiar, não tem sobrenome, não sabe de onde veio nem para onde vai. Tem a chave na mão, mas não existe porta. Quer voltar ao passado, mas o passado secou. Suas alternativas não passam de hipóteses seguidas de reticências, de vazios, do nada. Até a morte lhe é estranha. José é a essência do ser aporético, que não encontra saída nenhuma na vida. É o chamado zero à esquerda, pessoa sem valor, sem nada, niilizado, símbolo de uma era de massificação, época de objetos e de não sujeitos.
José surge em 1942, como parte de Poesias. O poema que dá título ao livro, sintetiza as preocupações básicas do poeta neste momento: a consciência de seu ser-no-mundo e o questionamento do sentido da existência humana.
Através da luta com as palavras, Drummond busca expressar essa conexão eu-mundo. Relação ainda bastante conflitiva, fruto da autonegação, da solidão que invade o artista da palavra, culminando na necessidade de adoção da máscara, José, a persona, por meio de quem fala o ser qualquer.
José é um livro em que o “eu” lírico, desencantado, percebe a sua solidão e a falta de perspectiva que o grande mundo o oferece. O poema “A Bruxa” (Idem p. 28) expõe esse momento de conscientização da solidão do homem no quarto, na América, no mundo: “Nesta cidade do Rio, / de dois milhões de habitantes, / estou sozinho no quarto, / estou sozinho na América. // Estarei mesmo sozinho?/ Ainda há pouco um ruído/ anunciou vida a meu lado. / Certo não é vida humana, / mas é vida. E sinto a bruxa/ presa na zona de luz” (Idem p. 28).
A tomada de consciência da própria condição de solitário leva a construção de um desejo de poetizar sobre a vida, naquilo que ela oferece não de pior, mas de prazer. Daí a necessidade de encontrar um amigo que seja leitor de Horácio, que saiba viver secretamente os prazeres da vida e ser, principalmente, amigo.
Porém, a realidade é um grande beco sem saída, é uma noite de confidências assustadoras, de vozes que ressoam como os gritos da bruxa a atordoar a paz, esperança de ter as mãos dadas com o companheiro e ter fé no futuro. O “eu” lírico é um “José” sem festa, sem minas, sem ouro, sem crença e amigo, um eu todo retorcido marcado por profunda angústia e solidão.
O poema de Drummond é uma flor, uma vida que se contrapõe à náusea da esterilidade dos seres insensíveis e sem essência. “A flor e a Náusea” (Idem p. 36) traduz uma forte carga existencialista.
O existencialismo é uma variante da temática social do livro A Rosa do Povo(1945). As inquietações existenciais de Drummond possuem fortes conexões com o cotidiano da grande cidade, mas também com o passado do poeta. Minas, a família, as ligações afetivas formam a rede sutil dos elementos que lhe fornecem a matéria – prima de suas investigações existenciais, em cujos extremos se localizam dois grandes mistérios, mediados pelo amor – que é sempre amar. A expressão da crise do indivíduo em face de um mundo também todo retorcido é evidenciado em “A flor e Náusea” Idem p. 36): “Preso à minha classe e a algumas roupas, /vou de branco pela rua cinzenta. /Melancolias, mercadorias espreitam-me./Devo seguir até o enjoo?/Posso, sem armas, revoltar-me?//Olhos sujos no relógio da torre:/Não, o tempo não chegou de completa justiça. /O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo podre, o poeta podre/fundem-se no mesmo impasse”. (Idem p. 36)
“A Flor e a Náusea” trazem um olhar reflexivo sobre a própria natureza do poético e a sua função social, por meio de metáforas. Tal reflexão exala perfume e náusea ao mesmo tempo, faz apologia à paz, fala da guerra e dos horrores da humanidade, ressaltando o branco, em oposição ao cinza, para expressar as contradições e dificuldades que a poesia social diariamente enfrenta.
Assim, “A Flor e a Náusea”, flor-poesia, revela a consciência da limitação do poema chamado social e considerado, por muitos, como “poema sujo”, “poesia impura” ou “antipoesia”. A flor-poesia é mal-vista, é considerada maldita, marginal:“nasceu na rua, no asfalto, não possui cor e nem pétalas, sua cor não se percebe. / Suas pétalas não se abrem. / seu nome não está nos livros. / É feia. Mas é realmente uma flor/” (Idem p. 37). Uma flor-poesia-revolução.
A função da arte poética como “Rosa do Povo”, como a poesia que fala do povo, é marcada por dificuldades, por caminhos espinhosos e vida severina. João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, assim poetizou sobre a poesia dita social: “É difícil defender, / só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é / esta que se vê, severina”.(NETO, J. C. M. (1980) p. 112). De fato, é nauseante a ideia de que o poeta pode até defender ou denunciar os problemas da carência humana, mas não pode resolvê-los de forma prática.
Esta circunstância de impotência diante dos problemas da vida provoca enjoo e revolta num poeta que tem dentro de si, um coração maior que o mundo e todos os sentimentos dos homens. Sua vontade é dar um grito de paz através da sua rosa. Este ato é coerente para quem escreveu dizendo “Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918 chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvo / e dou a poucos uma esperança mínima”. (Idem p. 37).
Nesses versos, de “A Flor e a Náusea”, Drummond depõe sobre um curioso episódio de sua vida que, graças a um incidente com um professor de Português, ele seria expulso do colégio Anchieta, em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Tinha Drummond seus 17 anos e nesta ocasião foi acusado de insubordinação mental e anarquista. O jovem, denominado revolucionário, tornou-se um dos maiores poetas da língua portuguesa e o professor de português ficou na história marcado por sua incoerência e insensatez, por sua visão retorcida sobre a educação e sobre o homem.
- Uma Província: Esta
A terra natal, em Drummond, não é apenas a sua Itabira de Mato Dentro – berço do poeta – mas as Minas Gerais com suas cidades históricas, seus espíritos, personagens e cultura. No poema “Prece do Mineiro no Rio” (Idem p. 78).
Carlos Drummond de Andrade realiza essa transfiguração da Terra Natal, em matéria poética: “Espírito de Minas me visita, / e sobre a confusão desta cidade, onde voz e buzina se confundem, / lança teu claro raio ordenador. / Conserva em mim ao menos a metade/ do que eu fui de nascença e a vida esgarça” (Idem p. 78). A vida é a maior fonte de inspiração para este poeta de alma e ofício. Por meio da leitura de todos os mundos, o poema surge poderoso. Sua terra e sua gente foram os primeiros mundos observados. Por isso, a família é antes de tudo tema de sua poesia: desde a figura paterna, passando pela mãe, irmãos, tios e até a preta velha chamada Maria. De sua terra e família nasce o coração maior que o mundo e toda a força evocativa de sentimento, de harmonia e de humanismo compõem essa poética do tempo presente e dos homens presentes.
Nos oito poemas que compõem essa seção, Carlos Drummond de Andrade percorre o “selo de Minas” colado em sua poética e marcando o seu jeito de ver o mundo, de sentir as coisas, de se colocar na vida: “Cidadezinha qualquer” (Idem p. 63), “Romaria” (Idem p. 64), “Confidências do Itabirano” (Idem p. 66), “Evocação Mariana” (Idem p. 67), “Canção da Moça – Fantasma de Belo Horizonte” (Idem p. 68), “Morte de Neco Andrade” (Idem p. 72), “Estampas de Vila Rica” (Idem p. 72), “Prece de Mineiro no Rio” (Idem p. 78).
Através de sua viagem poética, Drummond descreve cubisticamente a história de sua terra natal: a monotonia das cidadezinhas, as festas religiosas, as igrejas, seus anjos tortos, as minas, as estradas de ferro, cidades e suas histórias, os personagens e os fatos que vivenciou ou assistiu, o gado das Minas e do tempo confidenciado no canto de um itabirano: “Alguns anos vivi em Itabira. /Principalmente nasci em Itabira. /Por isso estou triste, orgulhoso: de ferro. /Noventa por cento de ferro nas calçadas. /Oitenta por cento de ferro nas almas. /E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.” (Idem p. 66)
“Confidência do Itabirano” (Idem p.66), a partir do título, já exprime a intenção do autor: falar de sua cidade de origem, que tanto o marcou, e cuja lembrança continua presente em sua vida como uma fotografia na parede.
A herança itabirana é presentificada não só nos objetos que o cercam, mas na sua maneira de ser – a tristeza, o orgulho, o hábito de sofrer – que atribui ao fato de haver nascido e vivido naquele ambiente.
A doce herança itabirana é marcante na obra drummondiana. Livros como Brejo das Almas, Confissões de Minas, Sentimentos do Mundo, Boitempo, Menino Antigo e Esquecer para Lembrar revelam sentimentos para com a terra natal, revolvem o passado na tentativa, talvez, de compreender a sua condição no mundo como homem e como poeta.
Foi através da leitura que o jovem poeta adquiriu informações e desenvolveu reflexões críticas sobre a realidade. Algumas leituras foram decisivas para a formação do Carlos poeta que, de sua Itabira do Mato Dentro, observava o cosmopolitismo da cidade grande ou dos países em evidência. Daí a ironia ao seu mundo interior revelado por “um anjo torto / desses que vivem nas sombras” da timidez e, talvez como o próprio poeta, também um gauche provinciano “sequestrado pela vida besta”, como certa vez observou Mário de Andrade.
É nesse ponto que podemos compreender a veia irônica marcante do poema “Cidadezinha Qualquer” (Idem p. 63), inserido pelo poeta em “Uma Província: Esta” e publicado em Alguma Poesia.
“Cidadezinha Qualquer” (Idem p. 63) é o retrato descritivo da monotonia, da mesmice, da rotina sem perdão das cidades interioranas. É o reflexo de um mundo excêntrico, longe dos grandes centros cosmopolitas. Por isso, o substantivo cidade, no diminutivo, ganha uma carga semântica de inferioridade e pequenez enfatizada ainda pela adjetivação qualquer: isto porque é uma cidadezinha comum, reles, sem qualidades, sem determinação e nem perspectiva, perdida nas Minas Gerais da vida.
Nesse lugar, de “casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras”, fora dos grandes centros, tudo vai reiteradamente devagar: homem, cachorro, burro, coisas, tudo sequestrado por uma vida besta. Essa mansidão faz parar o tempo, o ar e a pontuação: metaforizada já na primeira estrofe do poema, o que pode ser verificada no caos da falta de vírgulas a sugerir um lugar sem lei, sem homem e sem Deus.
“Cidadezinha Qualquer” exprime um espaço solto na existência, uma ausência de ordem e de um mundo primitivo, sem planejamento, que pode ser resumido por meio da locução adverbial “ao deus-dará” que significa à toa, sem governo próprio, descuidado, a reboque, a esmo, ao acaso, devagar, sem visão, ausente do mapa, abandonada, vaziada de ação e movimento.
- A família que me dei
Carlos Drummond de Andrade é um Poeta Maior e, como tal, trabalha temas metafísicos ou políticos, portanto universais. Dessa forma, a família que surge em seus poemas não é necessariamente aquela que ele teve, num memorialismo subjetivo, mas aquela que o tempo, depois de passado, permite conquistar.
Essa família que agora aparece é a representação da vida transformada em matéria de poesia. O “eu” poético que aparece nos textos é uma transfiguração das experiências vividas pelo próprio poeta, mas que traduzem os sentimentos do mundo também. “Retrato de família” (p. 83), “Os bens e o sangue” (Idem p. 86), “infância” (Idem p. 93), “Viagem na família” (Idem p. 94), “Convívio” (Idem p. 98), “Perguntas” (Idem p. 99), “Carta” (Idem p. 102), “A mesa” (Idem p. 104), “Ser” (Idem p. 116) e “A Luís Maurício, infante” (Idem p. 117) são os poemas escolhidos para essa seção que é um abrir de baús / e de lembranças violentas (Idem p. 94), uma “viagem na família” através do poético.
Por intermédio da poesia o “eu” lírico descobre a sua história e compreende o valor da vida. Essa descoberta não é piegas, sentimental, ao contrário, é metafísica e, às vezes, intolerável para o poeta que sente o desejo de abafar o insuportável mau cheiro da memória, como no poema “Resíduo” (Idem p. 320).
Outras vezes, reconhece a dimensão da exemplaridade que este passado tem em sua vida e em sua poesia, como nos poemas “A Mesa” (Idem p. 104) e “Os Bens e o Sangue” (Idem p. 86). No primeiro, surge a vontade louca de recuperar um tempo perdido para sempre: “E não gostavas de festas… / Ó velho, que festa grande / hoje te faria a gente. / E teus filhos que não bebem / e o que gosta de beber, / em torno da mesa larga, / largavam as tristes dietas, / esqueciam seus fricotes, / e tudo era farra honesta / acabando em confidência” (Idem p. 104). No último, podemos observar a voz dos laços familiares que evoca este poeta cantando: “– Ó meu, ó nosso filho de cem anos depois, / que não sabes viver nem conheces os bois/pelos seus nomes tradicionais… nem suas cores/marcadas em padrões eternos desde o Egito”. (p. 92)
A corrente familiar torna-se uma cadeia insuperável e, a despeito das diferenças, está selado pelas leis reunidas num código especial onde predominam “Os bens e o sangue” (Idem p.86). Pela voz dos parentes visitados, negados e nunca esquecidos, ganha som da sentença definitiva dos laços de família.
Os sentimentos se alteram de forma insensata expulsando a possibilidade de qualquer visão mais enfeitada do que pode ter sido a convivência. Viajando através da memória na história da família o “eu” poético reflete: “No deserto de Itabira/a sombra de meu pai/tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido. /Porém nada dizia. /Não era dia nem noite. /Suspiro? Vôo de pássaro? /Porém nada dizia. (Idem p. 94).
O poema “Viagem na Família” (Idem p. 94) é a descrição de uma “viagem patética” que empreende sempre guiado pela misteriosa figura do pai, levando-o como uma muda imagem virgiliana pelo espaço antigo, onde há mortos amontoados, casas em ruínas, ruas, relógios e baús. “No deserto de Itabira/ a sombra de meu pai tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido. / Porém nada dizia. / Não era dia nem noite. /Suspiro? Voo de pássaro? Porém nada dizia. // No deserto de Itabira/a sombra de meu pai /tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido. / Porém nada dizia. /Não era dia nem noite. /Suspiro? Voo de pássaro/ Porém nada dizia”.
Pisando livros e cartas, lá vão os dois, o filho angustiado indagando, o pai silencioso sugerindo mudamente a necessidade de tais roteiros. “Longamente caminhamos. /Aqui havia uma casa. / A montanha era maior. /Tantos mortos amontoados, / o tempo roendo os mortos. /E nas casas em ruína, /desprezo frio, humildade. /Porém nada dizia. […] Pisando livros e cartas, / viajamos na família. Casamentos; hipotecas; os primos tuberculosos; a tia louca; minha avó /traída com as escravas, / rangendo sedas na alcova. / Porém nada dizia”.
A viagem na família apresenta muitos momentos, ora lirismo, recordação marcada por saudades, ora ressentimento: “Vi mágoa, incompreensão/ e mais de uma velha revolta/ a dividir-nos no escuro. / A mão que eu não quis beijar, / o prato que me negaram, / recusa em pedir perdão. / Orgulho. Terror noturno. / Porém nada dizia”.
Drummond de Andrade é um indivíduo que sente e (re)-sente a vida e se recria através da memória. O poeta tenta recuperar o tempo passado, vencer a distância que o separa das terras mineiras e da história de sua família, à medida que percebe que o passado se torna presente, através da herança legada pelos bens e sangue. Carlos Drummond assume a captura do passado que, posteriormente, será desvendado com mais ousadia em Boitempo – Boitempo & A Falta que Ama, Menino Antigo e Esquecer para Lembrar. Nestas obras, voltam às reminiscências da infância e juventude, de sua cidadezinha, dos tempos de colégio, dos primeiros anos em Belo Horizonte.
Nessa seção “A família que me dei”, a construção dessa família é formada por antepassados, imagens reais e fictícias do poeta e, também, personagens desejados como pode ser observado no poema “Ser” (Idem p. 116) que canta em versos um filho inexistente: “O filho que não fiz. /hoje seria homem. /Ele corre na brisa. /sem carne, sem nome. /Às vezes o encontro/num encontro de nuvem. /Apoia em meu ombro/seu ombro nenhum.”(Idem p. 116)
O poema “Ser” enfatiza a sensação de vazio e a impotência diante de certos sonhos. A referência a essa criança não nascida faz pensar em seu primeiro filho, Carlos Flávio, morto momentos após o nascimento, levando o poeta a assinalar anos depois: “Interrogo meu filho, / objetos de ar:/ em que gruta ou concha/ quedas abstratas?” (Idem p. 116).
Esta dor profunda e sentimento de perda foram também matéria de poesia em “O que viveu meia hora” do livro A paixão medida. A imagem da sua paixão sem medida – sua filha Maria Julieta é referida no poema “A mesa” (Idem p. 104) sob as linhas da ternura maior do sentimento de um afeto absoluto, de um pai que morreu apaixonado por essa filha. Na bela passagem deste poema a figura de Julieta ainda menina é pura poesia: “Repara um pouquinho nesta, / no queixo, no olhar, no gesto, / e na consciência profunda/ e na graça menineira, / e dize, depois de tudo, / se não é, entre meus erros, / uma imprevista verdade. / Esta é minha explicação, / meu verso melhor ou único, / meu tudo enchendo meu nada” (Idem p. 112/113). Maria Julieta foi tudo na vida do pai, preencheu os insistentes vazios que seu lado gauche teimava em enfatizar.
Drummond foi um leitor e fazia suas viagens-pela-leitura, para conhecer o mundo e, também, para fugir da “chateação” da terra natal, e por isso dela se afastava para poder colonizar o seu sonho. Carlos Drummond mergulhava em sua viagem-pela-leitura, em sua “dificílima dangerosíssima viagem / de si a si mesmo: / pôr o pé no chão / do seu coração / experimentar / colonizar / civilizar / humanizar / o homem/ descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas/ a perene, insuspeitada alegria/ de com-viver”, como cantou nos versos de “O Homem; As Viagens”, (ANDRADE, 2002, 718) poema inserido no livro As Impurezas do Branco.
Através da leitura o jovem artista descobria o mundo e seus significados, visitava lugares inimagináveis, inventava outros mundos. Harold Bloom em Como e por que ler afirma que para ler bem é preciso ser inventor. (Bloom, H. (2001) p. 18). Drummond foi um grande leitor e inventor e, mais tarde diria, como epígrafe do livro O Corpo (1984) “O problema não é inventar: É ser inventada hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”. (ANDRADE, 2002, p. 1230).
O tema de Robinson Crusoé e da ilha aparece várias vezes na poesia e na prosa de Drummond. Em “Infância”, o “eu” poético descreve seu pai indo e vindo, as negras, o café, a mãe, o irmão mais novos e se põe apartado de todos contemplativamente: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. /Minha mãe ficava sentada cosendo. /Meu irmão pequeno dormia. /Eu sozinho menino entre mangueiras/lia história de Robinson Crusoé/comprida história que não acabava mais.” (Idem p. 93). No final, contrastando sua vida com a obra de ficção: “Eu não sabia que minha história/ era mais bonita que de Robinson Crusoé”.
Esse comportamento gauche é uma variante do conflito do “eu” versus o mundo. A ilha passa a ser o espaço ideal e o continente a dura realidade. A ilha de Drummond é uma espécie de Pasárgada de Manuel Bandeira, um lugar da realização de todos os sonhos impossíveis. A ilha é afinal, como afirmou posteriormente o próprio Drummond: “O refúgio último da liberdade, que em toda parte se busca destruir. Amemos a ilha” (Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 230).
Carlos Drummond de Andrade também sonhou com sua Pasárgada e como disse o próprio poeta, “apartar-se para uma ilha é inaugurar um novo espaço e novo tempo, porque tempo e espaço ordinários lhe são adversos […] há muito sonho essa ilha, se é que não a sonhei sempre”(Op. cit Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 201). Porém, mais amadurecido, no poema “Mundo Grande” confessa: Outrora viajei/ países imaginários, fáceis de habitar, / ilha sem problemas não obstante exaustivas e convocando ao suicídio/ meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem(Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 220).
O primeiro conjunto rítmico de “Infância” (p. 93) apresenta versos marcados por pontos continuados, a metaforizar a monotonia e a vida limitada do pai e da mãe: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé. / Comprida história que não acaba mais” (CDA Idem p. 93).
O último verso encerra esta estrofe com a imagem da comprida história do herói da ilha, para contrapor a imagem da vida limitada dos pais do menino leitor. É o momento em que lia as histórias de ficção; nesse instante a vida não tinha limite e, logo em seguida, no último verso explicita que a história de Robinson Crusoé não tem mesmo conclusão; apesar de numa posição contraditória, concluir a estrofe, com uma percepção realista de que a ficção tem fim também. A vida sim, é mais bela que a literatura, por este motivo os próximos blocos apresentam a realidade viva e poética ao mesmo tempo.
A vida do menino leitor no continente é sinestesicamente iluminada, cheia de canto e perfume do café da manhã, de sua terra, de sua gente, de seus amores infantis. A sua felicidade e a sua história são compridas que não acabam mais. Por último conclui sua narrativa real em dois sonoros blocos rítmicos: “Lá longe meu pai campeava/ no mato sem fim da fazenda. // E eu não sabia que minha história/ era mais bonita que a de Robinson Crusoé.” (p. 94).
“Infância” é um poema em que o artista reflete sua imaturidade por não perceber a grandeza do seu mundo físico e metafísico e, portanto, é uma revelação explícita do seu lado gauche inserido na “Família que me dei”.
- Cantar de amigos
A quarta parte dessa Antologia, Drummond reservou aos seus amigos. Apesar de seu jeito tímido e aparentemente reservado, Carlos Drummond de Andrade, o poeta de um coração maior que o mundo, teve muitos e fiéis amigos. Entre eles, quatro poetas brasileiros: Manuel Bandeira, Américo Facó, Jorge de Lima e Mário de Andrade. Esse último foi seu amigo e confidente, cuja amizade continuou alimentada por correspondência de anos. Sobre esses laços, assim testemunha o próprio Drummond: “As cartas de Mário de Andrade ficaram sendo o acontecimento mais formidável de nossa vida intelectual belo-horizontina. Depois de recebê-las, ficávamos diferentes do que éramos antes. E Diferentes no sentido de mais lúcidos. Quase sempre ele nos matava ilusões, e a morte era tão completa que só podia deixar-nos ofendidos e infelizes. Então reagíamos com injustiças, tolices, o que viesse de momento ao coração envinagrado. Mário recebia essas tolices, mostrava que eram simplesmente tolices, e ficávamos mais amigos... (ANDRADE, C. D. In: Lição do Amigo (1982) p. 27).
Mário de Andrade foi mais do que amigo, foi mestre responsável pela formação do poeta e pelo sentimento do mundo cultuado por Drummond. O poema “Mário de Andrade Desce aos Infernos” (CDA Idem p. 129) é um canto de amizade e reconhecimento pelo modo extraordinário com que Mário de Andrade cantou a poesia, o homem, o Brasil e a cultura em geral: “Daqui a vinte anos farei teu poema/e te cantarei com tal suspiro/que as flores pasmarão, e as abelhas, /confundidas, esvairão seu mel.” (CDA Idem p. 129).
Este poema dedicado ao amigo-poeta “minucioso, implacável, sereno, pulverizado, de tal modo extraordinário que: cabia numa só carta,/ esperava-me na esquina,/ e já um poste depois/ ia descendo o Amazonas,/ tinha coletes de música,/ entre cantares de amigo/ pairava na renda fina / dos Sete Saltos, / na serrania mineira,/ no mangue, no seringal,/ nos mais diversos brasis,/ e para além dos brasis, nas regiões inventadas,/ países a que aspiramos, / fantásticos, / mas certos, inelutáveis, / terra de João invencível, / a rosa do povo aberta…” (CDA Idem. p. 130/131). Estes versos definem e aplaudem o projeto artístico e humano de Mário de Andrade: a pesquisa cerrada da cultura popular, a penetração concreta na vida, na arte e na linguagem do povo brasileiro.
- Na praça de convites
“Na Praça de Convites” tem como temática o choque social, a poesia participante de Sentimento do Mundo (1940), José (1942) e A Rosa do Povo (1945). A preocupação com os problemas sociais marcou a década de 40 na evolução de Carlos Drummond de Andrade. É o período da Segunda Guerra Mundial, da ditadura de Vargas e da difusão de ideias socialistas, capitalistas, existencialistas e freudianas. De um modo geral, tudo isso ecoa nos poemas drummondianos desse período. Paira neles uma atmosfera de medo, incerteza, dúvida e limitações do indivíduo. O “eu” lírico fragmenta-se e retrata uma sociedade igualmente fragmentada.
Drummond jamais fez poesia partidária ou de engajamento político partidário propriamente dito, mas percebe-se em A Rosa do Povo a marca de um intelectual de fortes convicções antiburguesas e marxistas, como fazem pensar os famosos poemas “Nosso Tempo” (CDA Idem p. 160) e “Morte do Leiteiro” (CDA Idem p. 178).
A “Morte do Leiteiro” é uma crônica poética e dramática do cotidiano. O poema apresenta todos os elementos da narrativa: além do narrador, temos personagens, conflito, cenário e tempo: “Há pouco leite no país, / é preciso entregá-lo cedo. / Há muita sede no país, / é preciso entregá-lo cedo”. Estes versos exemplificam, entre muitos na obra do autor, como se pode extrair poesia de um acontecimento da crônica policial: um leiteiro é assassinado na madrugada pelo dono da casa, que o tomou por um ladrão.
Os versos se sucedem com extrema clareza e simplicidade e, no melhor estilo das baladas populares extraídas da vida real, são apresentados os dois personagens: o moço leiteiro e o proprietário. O primeiro é caracterizado com os seguintes versos: “empregado no entreposto; 21 anos; cumpridor de seu dever (sai correndo e distribuindo/ leite bom para gente ruim); mora no último subúrbio”. O segundo é descrito como: preocupado com os ladrões; vive em pânico “(acordou em pânico/ ladrões infestam o bairro)”; está sempre armado (Ladrão? se pega com tiro.); mantém-se acima da polícia (polícia não bota a mão/ nesse filho de meu pai.). Na penúltima estrofe, o verso salva a propriedade, “justifica”, do ponto de vista do assassino, a morte do leiteiro. É uma cena triste, sem luz, sem justiça e sem esperança.
O poeta faz uma oposição entre noite e aurora. A noite é o símbolo da maldade, da ignorância e da injustiça dos homens. A falta de luz alude ao mundo do proprietário, da sociedade capitalista que coloca os valores materiais acima dos valores humanos, do mundo de aparência, da falta da essência, do mundo demasiadamente desumano. Aurora é uma metáfora da esperança, do amanhecer, de uma nova sociedade, que com seu brilho augusto, redimirá as trevas da desumanidade. “Por entre objetos confusos, / mal redimimos da noite, / duas cores se procuram, / suavemente se tocam, / amorosamente se enlaçam, / formando um terceiro tom / a que chamamos aurora”(CDA Idem p. 178).”Nosso tempo” (CDA Idem p. 160) é um poema que reflete literalmente a fragmentação do tempo e dos homens: “Este é tempo de partido,/tempo de homens partidos./Em vão percorremos volumes, /viajamos e nos colorimos./A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua./Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. /As leis não bastam. Os lírios não nascem/da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se/na pedra” […] (CDA Idem p. 160)
“Nosso tempo” é um poema lírico e épico, porque ao falar dos sentimentos, o eu lírico canta, antes de tudo, os sentimentos do mundo; é um poema épico porque constitui um grande painel do horror contemporâneo e traduz toda a história dos tempos modernos com suas adversidades e desejos. A Rosa do Povo é a poesia que emana do desejo do povo, que fala a alma do povo e do caos do mundo. O poeta evoca essa rosa poesia para que todos, juntos, sigam de “Mãos Dadas” (CDA Idem p. 158) anunciando: “Não serei o poeta de um mundo caduco. /Também não cantarei o mundo futuro. /Estou preso à vida e olho meus companheiros. /Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. /Entre eles, considero a enorme realidade. /O presente é tão grande, não nos afastemos. /Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” (CDA Idem p. 158)
Este é um dos mais comentados poemas políticos de todo o Modernismo. É um texto engajado, comprometido, participante, e, ao mesmo tempo, de grande força poética, ritmo intenso e imagens intensas. O tom da fala, a oralidade, a linguagem coloquial muito expressiva, é acentuada pela pulsação livre dos versos que são marcas estilísticas importantes na criação do texto.
Na construção deste poema observa-se a maestria da enumeração de negações – que recusam as variadas formas de escapismos românticos, de fuga da realidade. A estilística da repetição, em especial da palavra presente, carrega ainda mais o texto de alta tensão poética.
Em “Mãos Dadas”, o poeta reafirma sua consciência da existência de outros homens, seus companheiros. Com eles é que se sente de mãos dadas – e renuncia aos seus temas pessoais: “Uma mulher, uma história, os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela”. O eu lírico não mais se refugiará na solidão, porque o que lhe interessa é o tempo presente em que se acha inserido, e os homens que o cercam.
“Os Ombros Suportam o Mundo” (CDA Idem p. 182) é outro poema político e existencial de grande intensidade, representante da poesia social de Drummond, aquela que “o coração é maior, muito maior que o mundo”. Neste texto, o “eu” poético conclui: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos secaram. / […] E o coração está seco” (CDA Idem p. 182).
Este poema está inserido no livro O Sentimento do Mundo (1940). O título do livro se faz presente a partir do momento em que o poeta fala na renúncia dos seus desejos e inquietações pessoais, que só o deixarão na mais absoluta solidão. Não importa sua própria vida, o tempo que passa e a velhice que avança, em face dos problemas do mundo, dos quais ele tem uma dolorosa consciência. Sente-se solidário com os que ainda não se libertaram do sofrimento. Sua vida se impõe como uma ordem: ela deve continuar para enfrentar a realidade de um mundo que ele imagina carregar nos ombros e que não deve pesar mais do que a mão de uma criança.
O Poeta é, antes de tudo, um questionador da realidade conflituosa e do mundo, numa perspectiva antirromântica, antilírica convencional, chamando à vida para o que há por se fazer.
“Os Ombros Suportam o Mundo” é um texto que exemplifica como a linguagem coloquial e as imagens diretas podem ser altamente expressivas, no reconhecimento da necessidade de perceber “que a vida é uma ordem, sem mistificação”(CDA Idem p. 182, sem ilusões vãs, com sobriedade, clareza e desencanto irônico, amargo, embora não resignado.
No poema “Sentimento do Mundo” (CDA Idem p. 154) seu canto ressoa dizendo: “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo, / mas estou cheio de escravos, / minhas lembranças escorrem / e o corpo transige / na confluência do amor”.
O “eu” poético apresenta uma preocupação sócio-política face a época cheia de conflitos: eclosão da Segunda Guerra Mundial, da Guerra Civil espanhola e da ascensão do nazifascismo. O mundo não está apenas desajustado, está fragmentado e caótico.
O poeta sente as dores do mundo e seus versos cantam os sentimentos da humanidade. A poesia é a sua contribuição para minimizar a falta de luz nessa grande noite da guerra e do desamor. O “eu” lírico é uma testemunha e um sujeito ativo que procura contribuir para melhorar, de alguma maneira, os sentimentos desse mundo enlouquecido. Embora, às vezes, tenha a sensação de incapacidade e escreva que: “Quando os corpos passarem, / eu ficarei sozinho/ desfiando a recordação/ do sineiro, da viúva e do microscopista/ que habitavam a barraca/ e não foram encontrados/ ao amanhecer/ / esse amanhecer/ mais noite que a noite” (CDA Idem p. 154-155).
- Amar – amaro
A seção “Amar – amaro” composta por 23 poemas retrata poeticamente as concepções do amor drummondianas. O poeta tematiza a pluralidade do sentimento que liga o homem e a mulher, os problemas das relações humanas, as incertezas, as inconstâncias e os desacertos do amor. Todavia, como o próprio poeta questiona: “Que pode uma criatura senão, / entre criaturas, amar? / amar e esquecer, / amar e malamar, / amar, desamar, amar? / sempre, e até de olhos vidrados, amar”(CDA Idem p.230). O amor é indissociável de certo saber, apresenta-se como enigma e nunca se deixa decifrar inteiramente. O amor suscita o poeta à metáfora da obscuridade (afetiva, intelectiva, existencial), em que se debate ou se tranquiliza. A carga de mistério do sentimento não se assemelha àquela promessa de felicidade arrebatadora com que os românticos sonhavam. O enigma nessa poesia é sintoma de impossibilidade, é sinal de irrealização como pode ser observado em “Entre o Ser e as Coisas” (CDA Idem p. 231): “N’água e na pedra amor deixa gravados/seus hieróglifos e mensagens, suas/verdades mais secretas e mais nuas. /E nem os elementos encantados / sabem do amor que os punge e que é, pungindo, /uma fogueira a arder no dia lindo.”(CDA Idem p. 231).
O amor além de ser um enigma é, antes de tudo, um paradoxo já descrito por Camões como contentamento descontente. Seus poderes são amargos, conduzem o sujeito à destruição, sugerindo o aniquilamento. Por esse motivo o “eu” lírico ironiza essa situação poeticamente em “Amar – amaro” (CDA Idem p. 239):
Por que amou por que a!mou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou soparedsesed
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula ev
idente?
ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
lúgubres de você mesm(o, a)
irm(ã, o) retrato espéculo por que amou?
(CDA Idem p. 239)
O questionamento inicial: “Por que amou por que a!mou” revela uma indagação do “eu” lírico, direcionada a um interlocutor, sobre o porquê o sujeito ter amado, uma vez que tinha conhecimento da complexidade que envolve amor.
O poema é marcado pelo ludismo sígnico e criativo do vocábulo “a!mou”, que pode ser lido, num relance do olhar ou leitura, como “amou”, ou “almou”, (palavra que não existe). No entanto, a letra “a” está adicionada ao ponto de exclamação “!”. Essa configuração sugere que o “a” é abreviatura de amor, seguida de um grito ou som penetrante, simbolizado pelo sinal exclamativo “!”, para expressar emoção, ou surpresa, ou admiração, ou indignação, ou raiva, ou espanto, ou susto, ou exaltação, ou entusiasmo. O “a” pode sugerir ainda o prefixo de origem grega “negação, afastamento, privação, negação, insuficiência ou carência”, enfim, ausência de amor, ou da ação de ter amado, daí o sofrimento. Uma vez que a palavra amor que dizer não à morte; a(mou). Seguindo a história mitológica que Eros ou Cupido quando luta e contra Tânatos (a morte), o amor sempre nega a morte.
No entanto, amor-dor-morte formam um conjunto de fundamental importância na complementação de uma grande paixão. O amor sem a morte não existe. Ama-se mais que a própria vida, morre-se de amor e por amor. Morrer de não morrer, dizia Santa Teresa de Ávila (1515-1582) insistindo no paradoxo de que morrer seria viver. Para a religiosa, morrer pelo amado era viver: “Vivo sem viver em mim/ E tão alta vida espero,/ Que morro por não morrer/ Vivo já fora de mim,/ Depois que morro de amor,/ Porque vivo no Senhor,/ Que me quis só para si./ Meu coração lhe ofereci/ […] Que morro por não morrer./ Esta divina prisão/ Do amor em que hoje vivo,/ Tornou Deus o meu cativo/[…] /Deus meu prisioneiro ver,/Que morro por não morrer”.
Para Bataille, Eros é definido como o impulso, e por isso não se contrapõe a ele, mas o incorpora em sua essência, porque, citando o fenômeno biológico da concepção, que é a base da vida humana, mostra que com a morte do espermatozoide é dada a origem a um novo ser. Daí, a morte se toma vida (cf BATAILLE, G. (1980), p. 120). Vida e morte estão, portanto, na origem da existência erótica e são a oposição entre o caráter contínuo do ser e a descontinuidade dos indivíduos.
Julius Evolas professa que “ao amar e desejar, o homem procura afinal, a confirmação de si próprio, a participação no ser absoluto e na destruição da steresis, privação e da angústia existencial a que ela está ligada” (JULIUS, E. (1976), p. 72). Através do amor, o homem se unifica e se eterniza.
Numa análise psicanalítica, na teoria das pulsões, Sigmund Freud (1893-1895) descreveu antagônicas: a de eros, Eros – uma pulsão com vocação à preservação da vida; e a pulsão de morte, Tânatos – que provocaria à discriminação de tudo o que é vivo, à destruição.
Nessa análise, o amor e ódio, desejo e agressividade, vida e morte, são forças que habitam no ser humano e estão presentes no cotidiano. Essa bipolaridade é o centro dos conflitos psíquicos e sociais que tem como base a interpretação da mitologia grega que narra a história Eros como o deus do amor e Tânatos, como deus da morte.
Numa síntese a respeito de pulsão da morte encontrada na wikipedia, pode ser visto que:
Pulsão de morte (em alemão: Todestrieb), também conhecida como Tânato, é um termo introduzido pelo psicanalista austríaco Sigmund Freud em 1920.Na teoria psicanalítica freudiana clássica, a pulsão de morte é a pulsão em direção à morte e à autodestruição. Foi originalmente proposta por Sabina Spielrein em seu artigo “Destruição como a causa do surgimento” (Die Destruktion als Ursache des Werdens) em 1912, que foi então adotada por Sigmund Freud em 1920 na obra “Além do Princípio do Prazer”. Este conceito foi traduzido como “oposição entre os instintos do ego ou da morte e os instintos sexuais ou de vida”. [Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud usou o plural “pulsões de morte” (Todestriebe) com muito mais frequência do que no singular. A pulsão de morte se opõe a Eros, a tendência à sobrevivência, propagação, sexo e outras pulsões criativas e produtoras de vida. A pulsão de morte às vezes é chamada de “Thanatos” no pensamento pós-freudiano, complementando “Eros”, embora esse termo não tenha sido usado no próprio trabalho de Freud, sendo introduzido por Wilhelm Stekel em 1909 e depois por Paul Federn no contexto atual. Na sua teoria das pulsões Sigmund Freud descreveu duas pulsões antagônicas: Eros, uma pulsão sexual com tendência à preservação da vida, e a pulsão de morte (Tânato) que levaria à segregação de tudo o que é vivo, à destruição. Ambas as pulsões não agem de forma isolada, estão sempre trabalhando em conjunto segundo o princípio de conservação da vida. Como no exemplo de se alimentar, embora haja pulsão de vida presente – sendo a finalidade de se alimentar a manutenção da vida – ela implica-se à pulsão de morte, pois é necessário que se destrua o alimento antes de ingeri-lo. Aí presente um elemento agressivo, de segregação, este se articula à pulsão primeira, como sua necessária contraparte na função geral de conservação. https://pt.wikipedia.org/wiki/Puls%C3%A3o_de_morte
Sobre Eros e Tânatos Freud afirmou que: “nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se dando, não entre pulsões do eu e pulsões sexuais, mas entre pulsões de vida e pulsões de morte” (Freud, 1920, p. 73)
A pulsão de morte está para além do princípio do prazer e do aparelho psíquico. Na visão de Freud, Tânatos simboliza um comportamento autodestrutivo, uma expressão da energia criada pelos instintos de morte. E quando essa energia é remetida para fora e para os outros, é impulsionada como agressão e violência.
Noutra visão, o sinal de explanação está dentro do verbo amar, no pretérito perfeito: “amou” – a!mou. Disposta assim, a palavra “a!mou” insinua que esse amor que passou foi marcado por muitas dores.
Ainda, “a!mou” pode ser visto como um SEMEMA, que, seguindo a ideia de análise componencial de Bernard Pottier. Segundo este linguista francês, o semema é o resultado da soma dos semas que formam o significado global de um lexema. Assim, o semema <cadeira> é o resultado de Sema1 “para sentar”, mais o Sema 2 “com pés”, mais o Sema 3 “com encosto”, mais o Sema 4 “sem braços”: (Cf. LOPES, Edward. 2003, p. 264-267).
Seguindo a visão de Pottier e considerando “a!mou” como semema, teremos: o semema < a!mou > é o resultado de Sema1 ” verbo amar no pretérito; mais o Sema 2 ” sentiu a emoção de amar “, mais o Sema 3 ” exclamou um amor “, mais o Sema 4 ” se entregou de corpo e alma“.
Logo, o Semema < a!mou > = S1 (verbo amar no pretérito) + S2 (sentiu a emoção de amar) + S3 (exclamou um amor) + S4 (se entregou de corpo e alma).
Essa rede de relações acionam a polissemia da palavra poética “a!mou”. Para Rehfeldt “polissemia […] segundo os próprios componentes (poly + sema + ia), é palavra que comporta várias significações” Rehfeldt, 1980, p. 77). E, um significado polissêmico é quando num mesmo significante unem-se vários feixes de semas ou sememas, que se diversificam pelas combinações diferentes de semas. Dessa forma, uma lexia polissêmica é aquela que preserva uma unidade de significado, isto é, a sua unidade é garantida pelo núcleo sêmico comum aos múltiplos setores de semas. Com efeito, esse núcleo sêmico comum é que permite ao falante identificar um único signo linguístico em suas diferentes realizações no discurso. (cf. Para Barbosa 1996 p. 245-249).
O poético é constituído pela plurissignificação, pela polissemia. Ezra Pound instrui que “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. (POUND E. 1990, p. 32).
Diante do exposto, o poético é a explosão de pluralidade de sentidos. O crítico Gilberto Mendonça Teles, afirmou numa entrevista que: Há três mil anos que os poetas vêm definindo a poesia. Para ele a poesia é o que revela o invisível. “Você lê um poema uma vez, na segunda vez, pode descobrir alguma coisa, ou um sentido que não observou ou sentiu na primeira leitura”. (cf. TELES, M. G. Entrevista para PUC TV, 2018)
Ao longo do poema “Amar – amaro”, “eu” lírico que como já afirmei, se dirige a um ser que amou, cometeu erros. Esse interlocutor ou o sujeito da ação de amar, não soube seguir os caminhos perigosos desses sentimentos, “ternos” ou desesperados. Esse indivíduo é marcado pelo gauchismo do poeta, que foge do lado destro e segue sempre pelo lado esquerdo, canhestro; é inseguro no amor, e sem determinação: daí a palavra “desesperados”, está disposta ao avesso, do contrário: ““soparedsesed”.”.
A ironia poética do “eu” lírico segue quando faz outra pergunta: “nesse museu do pardo indiferente/ me diga: mas por que/amar sofrer talvez como se morre/de varíola voluntária vágula ev/idente?”A sonoridade museu do pardo ironicamente alude ao famoso Museu do Prado, um dos mais importantes do mundo, localizado em Madrid, Espanha. Foi construído por Carlos III e inaugurado somente no reinado de Fernando VII. Nele, estão expostas preciosas obras do mundo das artes. Aqui, o “eu” poético lembra que o amor guarda a história da humanidade, é um “museu de tudo”, é a própria história da vida e morte: tudo viu e testemunhou, com indiferença sombria, parda, sem claridade, sem temperamento ou cor definida: museu do pardo indiferente. Sugere também que todos querem viver o amor, conhecê-lo, mesmo correndo o risco de sofrer, de morrer voluntariamente pelo vírus errante do amor, que vagueia invisível e traiçoeiro, embora evidente. No entanto, colocado separadamente nos versos do poema, ev/ idente, sugere que não se identifica de forma tão fácil, não é tão visível, porque é um vírus e se transforma numa virose ou varíola, ameaçadora.
Daí, o “eu” poético retorna a fazer nova inquirição exclamativa, em caixa alta e tudo ligado, numa grande palavra-interrogação: ah PORQUEAMOU/ e se queimou.
Esse tom irônico em torno do desacerto do amor que, como poeta é também um gauche, avesso e cheio de conflito, está retratado no poema “Quadrilha” (CDA p. 193). Esse antológico texto é poema-piada, portanto é carregado de antilirismo, e da ironia amarga e seca sobre os desconcertos do amor, sobre a rede de desencontros e inconstância das relações amorosas. Ironiza ainda, a constante falta de correspondência das cirandas de amores e desgostos. E, um toque especial de humor irônico é enfatizado ao dar um casamento final para Lili, única personagem que não amava ninguém na história.
Construído em versos livres, o poema é dividido em duas partes: na primeira, são observados os caóticos desencontros amorosos de “João que amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém”. Nestes versos só existe o ponto final.
Esses três primeiros versos são construídos com uma oração principal (João amava Teresa) e cinco orações adjetivas. O pronome relativo retoma sempre o objeto da oração anterior e projeta-o como oração que introduz, de maneira a configurar um interminável desencontro, que culmina no nada, na ausência, de ser indicada pelo pronome indefinido ninguém, que encerra o período.
Entre os vários recursos estilísticos, apontados pela crítica, está a poeticidade do primeiro bloco que é acentuado pelo ritmo bem-marcado dos dois primeiros versos que lembra a cadência da quadrilha. O final da dança (que não amava ninguém) tem o ritmo ligeiramente alterado. A metáfora da quadrilha está também no encadeamento das orações do primeiro bloco rítmico e sua estrutura sintática, em que o objeto do verbo é sujeito do verbo seguinte, simbolizando a constante troca de pares da quadrilha.
A segunda parte da dança não tem o ritmo cadenciado da primeira, é escrita de maneira prosaica, é o desfecho da história dessas personagens e, portanto, traduz a ruptura entre o mundo do desejo e o da realidade: “João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili se casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história”. Cada personagem vinculou-se ao seu destino: Longa viagem, convento, morte trágica e física, morte metafísica e trágica (naquela época ficar para titia era morrer tragicamente para o mundo), suicídio e se casar com quem não tinha entrado para a história.
Muitos estudiosos da obra de Drummond chamam atenção para o fato da outra parte da história ser construída com orações coordenadas. Sua única oração subordinada é que não tinha entrado na história. A coordenação indica a não – relação dos fatos expressos pelas orações, o que mostra que as ocorrências na vida das pessoas não guardavam qualquer relação com o que elas desejavam. O verbo ir é intransitivo, concorre para indicar que a ação por ele expressa, não incide sobre nada ou sobre ninguém.
Algumas leituras de “Quadrilha” sustentam que as figuras “ir para os Estados Unidos” e “ir para o convento” remetem ao tema da “evasão espacial”. Nos verbos morrer e ficar, o sujeito é paciente, o que revela que ele não age, mas sofre os acontecimentos. O verbo suicidar-se tem um objeto expresso por pronome reflexivo, mostrando que o ser humano só tem controle sobre as ações que dizem respeito a si mesmo. Suicidar-se remete também ao tema da evasão.
Só o verbo casar indica ação que incide sobre alguém. No entanto, Lili não se casou com uma pessoa (um nome), mas com um sobrenome. Pinto Fernandes é um sobrenome tradicional, o que conota posição, dinheiro. O primeiro sobrenome remete, além disso, à ideia de masculinidade, com toda a carga conotativa que ela possui numa visão estereotipada do casamento tradicional: segurança, apoio, capacidade de liderança.
“Quadrilha” é jogo amoroso que retrata a vida e a arte de compor versos polissêmicos, carregados de sentidos até o máximo grau possível. Mais do que interpretar as possíveis conotações o poema deve ser sentido. “Quadrilha” traduz o amor pela arte da palavra e remete ao leitor comum ou ao crítico especializado, um desejo de descobrir as artes e as manhas desse Amar-amaro drummondiano que sensibiliza e salva a humanidade das dores amargas da ignorância e do desamor.
- Poesia contemplada
“Procura da Poesia” (CDA Idem p. 247) é o poema de Carlos Drummond de Andrade mais analisado pela crítica literária por expressar, por meio da metalinguagem, uma tradução perfeita dos pressupostos teóricos da lírica moderna.
Neste poema, Drummond contempla o ato poético e teoriza com maestria sobre a arte da palavra. Entre as suas orientações, evidencia que não se faz literatura com ideias e sentimentos: O que pensas e sentes isso ainda não é poesia, mas pode vir a ser. É necessário que o eventual assunto do poema (o que pensas e te sentes) encontre a forma de expressão linguística adequada. Mas essa linguística não pode surgir por um trabalho apenas da inteligência: deve nascer espontaneamente da contemplação das palavras. O poeta deve aguardar que as palavras se revelem e, como numa gestação, se unam formas e fundo, dando o nascimento ao poema. Então, sim, o que pensas e sentes se terá transmutado em poesia.
O primeiro segmento de “Procura da Poesia” é todo estruturado pela repetição (anáfora) de frases interrogativas que condenam a busca da poesia por um caminho equivocado, ou seja, confundida com aquilo que “ainda não é poesia”: é apenas o assunto do poema, o mundo físico ou sentimentos individuais entre si. Entre ambos, a poesia e seu eventual assunto, existe o instrumento da arte poética, que é a palavra. Só a palavra organizará o poema. Mas a palavra tem suas características peculiares e suas limitações: “Não faças versos sobre acontecimentos. /Não há criação nem morte perante a poesia. /Diante dela, a vida é um sol estático, /não aquece nem ilumina. /As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. /Não faças poesia com o corpo, / esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. (CDA Idem p. 247)
Pode-se interpretar, à luz do contexto, as proibições de Drummond contidas nessas frases imperativas, marcadas pelo signo do não, da seguinte forma: essas restrições representam uma advertência de Drummond àqueles que pretendem iniciar-se na arte poética. Esta é a lição, para que não se deixe iludir pela presença do mundo físico, dos acontecimentos ou dos sentimentos individuais em si, a ponto de confundi-los com a poesia. A poesia só pode ser descoberta na contemplação das palavras. Elas têm o poder de atuar sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os sentimentos individuais e deles extrair o poético.
O poeta deve mergulhar no reino das palavras, no rio da linguagem e, numa incessante perquirição à procura do poético, chegar às profundezas do discurso, onde tudo é silêncio. O artista chega mais perto e contempla as palavras, então deverá saber decifrá-las, encontrá-las nesse rio da fala, do discurso. O silêncio conduz o indivíduo à sabedoria, à razão, está ligado à retórica. Por meio do silêncio o invisível se revelará, pois a falta de visão inicia a busca da verdade poética, no próprio poema: “Não recomponhas/tua sepultada e merencória infância. /Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. /Que se dissipou, não era poesia. /Que se partiu, cristal não era. (CDA Idem p. 248).
O poeta submerge no reino da linguagem à procura das palavras que estão paralisadas, sem pressa de sair de lá; invade esse reino tentando decifrá-las, pois elas anunciam, tal como a famosa esfinge de Tebas: “Decifra-me ou devoro-te”. O artista deve tomar cada palavra, uma por uma e conhecer a magia de cada uma, com suas múltiplas combinações sintáticas e semânticas; deve percorrer todo o reino e, palmo a palmo, ter conhecimento daquele terreno, pois, se assim não proceder será devorado pelas próprias palavras. Depois, conviver diuturnamente com a linguagem até encontrar a sintaxe invisível do conceito, da melodia do canto poético.
Após descobrir as artes e manhas da poesia e dos mistérios do verdadeiro ouriço que é o poema, o artista cria o texto que não deve, necessariamente, falar do mundo pré-existente. O sentido literário é o fíat, que significa criação.
O mundo físico, os acontecimentos, o corpo, os sentimentos individuais em si, nada disso é ainda poesia. Tudo deve ser recriado, graças ao poder misterioso da palavra, numa nova realidade, em que o mundo se apresente reformulado em termos humanos e o homem se encontre liberto e universalizado (integrado ao mundo). Da nova realidade, só possível pela palavra, surge a poesia.
O poeta deve penetrar surdamente no reino das palavras sem nenhuma ideia preconcebida, humildemente, com atenção e receptividade, buscando a intimidade dos vocábulos, atento a sugestões que deles se desprendem, esperando que as palavras se revelem e mostrem aquela face secreta em que, como num molde, se ajuste à ideia poética.
O reino das palavras implica poder e autonomia. Ora, as palavras são ricas de sentido e potencialidade de comunicação; além disso, possuem aquela face secreta capaz de, unindo forma e fundo, construir o poema. As palavras são independentes do poeta para existir, uma vez que fazem parte do código social, a língua.
O poeta não pode adiantar-se, querendo escolher com a inteligência as palavras que formarão o poema. O que lhe cumpre fazer é, contemplando as palavras, esperar que elas se revelem e extraiam da consciência os elementos poéticos que, com ela fundidos, façam surgir o poema que comunicará a poesia.
Assim, o poder de silêncio é a capacidade que as palavras têm de sozinhas, sem a participação organizada da inteligência do homem, agir como estímulo para extrair do inconsciente o material poético. O poder da palavra é, no poema, a capacidade que o vocábulo possui para comunicar a poesia.
As palavras guardam a impressão, o rastro, o eco, a figura, a face de todas as vivências humanas no mundo. Na verdade, o interior da palavra é o reflexo da alma do homem e do mundo. O ser é manifestado através da linguagem, como afirma Martin Heidegger (1889 – 1976) na obra Carta sobre o humanismo (Über den humanismus) 90, escrita em 1946: A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato de consumara manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam. Não é por ele irradiar um efeito, ou por ser aplicado, que o pensar se transforma em ação. O pensar age enquanto exerce como pensar. […] (HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. 2005, p. 55) De acordo com a sua Essência, a linguagem é a casa do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e disposta a partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da linguagem numa correspondência ao Ser e como uma tal correspondência, isto é, como a morada da Essência do homem”. (Op. cit. 2005 p. 55).
Assim, os poetas são os guardiões da linguagem movimentada pelas palavras, que moram dentro do ser que poeta e que tem o domínio de lutar contra as intempéries da linguagem poética, que não se edifica de repente. O poeta se constrói ao longo de um trabalho diuturno com as palavras, como certifica o poema: “Penetra surdamente no reino das palavras. /Lá estão os poemas que esperam ser escritos. /Estão paralisados, mas não há desespero, /há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. /Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. /Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. /Espera que cada um se realize e consume/com seu poder de palavra/e seu poder de silêncio. /Não forces o poema a desprender-se do limbo. /Não colhas no chão o poema que se perdeu. /Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada/no espaço. /Chega mais perto e contempla as palavras. /Cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra /e te pergunta, sem interesse pela resposta, /pobre ou terrível, que lhe deres:/Trouxeste a chave?” (CDA Idem p. 248-249)
A construção de um texto poético poderia ser comparada a um poliedro de mil faces. Cada face teria a capacidade de comunicar uma ideia ou um sentimento. As faces secretas não se revelam facilmente, a não ser no momento em que o poeta está psicologicamente preparado para receber a mensagem do inconsciente.
Em Trazer a chave significa que o poeta deve apresentar-se psicologicamente preparado para receber a revelação das palavras, sem nenhuma ideia preconcebida, humilde, disposto a receber, atento às sugestões. Caso contrário, não abrirá as portas do “segredo”: as palavras reagirão desfavoravelmente e nada revelarão.
Essas lições de poesia drummondianas levaram muitos críticos a afirmar que o poeta mineiro é o mais importante teórico da moderna poesia brasileira, uma vez que os princípios de sua Poética (é claro, de sua retórica) provêm simultaneamente do mesmo ato criador da poesia. De acordo com Gilberto Mendonça Teles: “A atenção do poeta se torna intransitiva, volta-se para si mesma, observando a criação de dentro para fora, na sua raiz de modo que a linguagem é que se torna objeto da especulação poética. Daí a metalinguagem, o poema sobre o poema, sobre a poesia, sobre a linguagem, sobre a gramática, enfim sobre os elementos do discurso poético. (Teles, G. M. 1989, p. 237).
O poema “O Lutador” (p. 243) é outro exemplo da melhor Poética – retórica do Modernismo. É um metapoema que dá lição da concepção universal da poética moderna, da luta diuturna através do reino das palavras e da descoberta de suas faces secretas e enigmáticas. Ao falar das dificuldades na relação com as palavras, o poeta filosofa sobre a arte poética dizendo: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos / mal rompe a manhã. / São muitas, eu pouco. / Algumas, tão fortes / como o javali. / Não me julgo louco. / Se o fosse, teria / poder de encantá-las.” (CDA Idem p. 243)
A opção por versos curtos estruturando o poema confere ao texto um ritmo de tensão, refletindo o momento de luta que o poema procura captar.
Para escrever poesia não basta ter boa intenção, é preciso mais do que isso: é necessário muita luta, lucidez e uma certa frieza para realizar essa obra de arte.
Em “O Lutador”, Drummond de Andrade desmistifica o conceito de poesia como algo mágico e como tarefa divina. O trabalho poético, na lição do poeta, é uma atividade produtiva, igual a tantas outras na sociedade, é uma luta pelo sustento, daí afirmar: mas lúcido e frio, / apareço e tento / apanhar algumas / para meu sustento / num dia de vida.
“O Lutador” reitera a teoria que Drummond apresenta em “Procura da Poesia”, de que o poeta deve penetrar no reino da palavra através de uma luta corpo a corpo; todo o tempo sem nenhuma ideia pré-concebida, humildemente, com atenção e receptividade, buscando a intimidade das palavras, atento às sugestões que delas se desprendem, esperando que as palavras revelem aquela face secreta em que, como num molde, se ajuste a ideia poética.
Nessa seção denominada “Poesia Contemplada”, além dos poemas “Procura da Poesia” (CDA Idem p. 247) e “O Lutador” (CDA Idem p. 243) que fundamentam as teorias de uma nova Poética e de uma nova Retórica do modernismo brasileiro, Drummond escolheu outras lições importantes: “Brinde no Banquete das Musas” (CDA Idem p. 250), “Poema-Orelha” (CDA Idem p. 252), “Conclusão” (CDA Idem p. 254) e “Oficina Irritada” (CDA Idem p. 251).
Em “Oficina Irritada” o poeta expõe: “eu quero compor um soneto duro / como poeta algum ousara escrever. / eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler”. Este poema é um exemplo da fase neoclassizante de Drummond que adere às normas fixas, como soneto e o recurso à chamada “expressão nobre” do clássico, filosófico e perfeccionista. Essa adesão foi vista com certo azedume pelos críticos de vanguarda. Por outro lado, foi bem recebida pelos críticos em geral e pelo grande número de admiradores da poesia de Carlos Drummond de Andrade.
- Uma, duas argolinhas
Esta seção “Uma, duas argolinhas” corresponde aos exercícios lúdicos. Os poemas escolhidos por Drummond para esta parte foram: “Sinal de Apito” (CDA Idem p. 257), “Política Literária” (CDA Idem p. 258), “Os Materiais da Vida” (CDA Idem p. 259), “Áporo” (CDA Idem p. 260) e “Caso Pluvioso” (CDA Idem p. 261).
O poema “Sinal de Apito” (CDA Idem p. 257), publicado no livro Alguma Poesia (1930), explana a marca da renovação literária de 1922 e incorpora o humor e o tom de piada do primeiro período do Modernismo brasileiro que marcou influência na poesia drummondiana da primeira fase: Um silvo breve: “Atenção siga. / Dois silvos breves: Pare / Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna. / Um silvo longo: Diminua a marcha. / Um silvo longo e breve: Motorista a postos” (CDA Idem p. 257).
Estes versos além de assinalarem a rebeldia às formas de versificar consagradas até então, buscam uma linguagem direta, pessoal, mas tangenciando o “poema-piada” posto em voga pelos modernistas, num jogo poético marcado por ironia, humor, ideias, ação e, antes de tudo, criação.
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- A Tentativa de exploração e de interpretação do estar no mundo
Em “Especulações em “Torno da Palavra Homem” (CDA Idem p. 295) o poeta questiona: Que milagre é o homem? / Que sonho, que sombra? / Mas existe o homem? O “eu” poético apresenta uma inquietação em consequência do momento da autoanálise e do mergulho metafísico em torno da sua história, do seu passado, do caminho para o entendimento da própria existência.
Nos 28 poemas escolhidos por Drummond para essa parte da Antologia denominada “Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” o autor busca entendimento sobre o sentido da vida e do homem, ao mesmo tempo que filosofa sobre a própria linguagem poética e seu Claro Enigma(1951).
A poesia filosófica de Carlos Drummond de Andrade reflete sobre temas universais de caráter metafísico como: vida, morte, tempo, velhice, amor, além, é claro, dos temas sempre presentes, como a família, a infância e a própria poesia.
O pessimismo com que esses temas são abordados chega a ser maior do que a fase inicial do poeta, denominada de gauche; é um pessimismo corrosivo, ácido, uma vez que esperança de um tempo de harmonia e homens presentes já se frustrou.
O desejo de autoconhecimento, que guiava o poeta através das sete faces daquele poema de abertura Alguma Poesia (1930), mantém-se e as cenas da vida vão sendo projetadas numa tela imaginária que a poesia focaliza.
O cultivado hábito de se auto admirar não significa necessariamente um engano: o poeta jamais perde a consciência da relatividade de tudo, inclusive da sua própria capacidade de investigar as coisas. Por isso, muitas ilusões se perdem e mesmo a madureza, que poderia trazer alguma quietude, é vista sobe outro ângulo.
O poema “A Ingaia Ciência” (CDA Idem p. 316) ilustra essa tendência filosófica e ao mesmo tempo classicizante de Drummond: A madureza, esse terrível prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo sabor gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma estela. (A expressão “ingaia ciência”: neologismo criado pelo autor a partir da negação de gaia ciência, arte de poetar entre os provençais da Idade Média.
O filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 -1900) também escreveu um livro intitulado A Gaia Ciência (traduzida também com Alegre Sabedoria, ou Ciência Gaiata (Die fröhliche Wissenschaft, 1882), no qual o pensador reflete sobre questões como a moral, a necessidade de crença, o sentimento de potência etc.).
Este poema evidencia que associado à noção de maturidade, o poeta assume o exercício da memória, buscando, através dela, conquistar a compreensão das coisas que o atormentam: os problemas da família, as angústias que trouxe da terra, a perplexidade diante do amor. E se mostra convicto da inviabilidade do mundo gauche com seus avessos.
Entretanto, foi esse avesso do avesso que nos legou o polêmico “No Meio do Caminho” (CDA Idem p. 267). Sobre esses versos Drummond afirma: Sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais. (Op. Cit. Andrade, C. A. In: Coutinho, A. (1964) p. 525).
“No Meio do Caminho” causou grande escândalo e muita divergência quando publicado e, mesmo depois, a tal ponto que o próprio poeta organizou, em 1968, uma antologia, Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema, onde reuniu tudo que se publicou a respeito, ou se fez, parodiando seus versos.
O poema “No Meio do Caminho”, sem dúvida, fez história no Modernismo como o mais polêmico texto poético, construído através de uma estrutura revolucionária, de caráter aparentemente irônico e caótico para os leitores mais desavisados. A arte é estranhamento e, é também, na concepção de Ezra Pound novidade que permanece novidade. (Pound, E. (1990) p. 32). “No Meio do Caminho” foi essa novidade estranha e poética formada por versos que se repetem, circulares, em torno da pedra: No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra.
Uma leitura inocente leria apenas uma frase que vai até a pedra e volta (no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho). No entanto, tal leitura não passa da mais pura insensatez, porque o texto sugere muitas interpretações, menos esta visão denotativa e direta da frase. A organização sintática e cheia de repetição é o fíat, isto é, a maior criação do poema.
O poema é, antes de tudo, literatura e, como tal, é linguagem carregado de conotação ou de sentido figurado, portanto difere da linguagem denotativa, porque sua função não é só comunicar, mas também expressar emoções particulares do autor, ser original.
A famosa “pedra” no meio do caminho pode significar inúmeras coisas: pedra mesmo, no sentido abstrato e restrito do dicionário; dificuldade, o que atrapalha; coisa marcante, duradoura, eterna; coisa que corta pétrea e, enfim, um mundo de significações.
Entre os vários recursos de estilo utilizados por Drummond neste genial poema, vários críticos literários realçam a caprichosa disposição das palavras em cada verso. Estudiosos da obra drummondiana enfatizam a colocação estratégica da palavra “pedra”. Apontam que sobre a sílaba tônica “pé” se descarrega o ímpeto do fluxo rítmico e sonoro crescente formado pela sequência de nasais envolvendo e arrastando sons vocálicos fechados.
O dinamismo desse movimento imita o ritmo e o rumor de sucessivos golpes de martelo. A pedra, símbolo da dificuldade para a expressão poética, é que recebe as investidas. O primeiro verso corresponde à primeira martelada, desferida por quem ainda está excessivamente confiante ou ainda não percebeu a dureza da pedra; assim, revela-se inútil. Então se sucede a segunda martelada, desferida com maior violência, mas que patenteia, no recuo do martelo (observe-se a colocação da palavra “pedra” no meio do verso), a impotência do golpe; a terceira, breve, de preparação talvez para novo ímpeto, pode representar a concentração das forças mirando alvo bem determinado (o verso é curto, seguido de uma espécie de pausa ou silêncio de atenção concentrada); a quarta e última confirma definitivamente a invulnerabilidade da pedra e o despreparo do que descarregou os golpes.
E a mensagem – a dificuldade do poeta em penetrar no reino das palavras – encontra-se esclarecida nos versos que seguem: o poeta humildemente confessa que jamais se esquecerá da experiência difícil que teve com as palavras no início de sua atividade de artista (com certeza ainda não se julgava psicologicamente preparado, ainda não tinha “trazida a chave…”).
Esta é uma interpretação coerente, por outro lado, a arte traz a marca do enigma e as marteladas doloridas e sonoras das dificuldades labirínticas da vida. “No Meio do Caminho tem uma Pedra” expressa toda a pluralidade de imagens e sentidos que o texto artístico metaforiza, com uma simplicidade singular.
Carlos Drummond demonstrou também que o belo e o poético residem basicamente na criatividade, não precisam da retórica e da técnica do poeta-escultor como defendiam os parnasianos.
Nesse sentido, pode-se interpretá-lo como uma crítica às teorias passadistas, que comparavam a criação do artista da palavra, com o trabalho do ourives com seus martelos e suas pedras preciosas lapidadas, como enfatizou Olavo Bilac no poema “Profissão de fé”. Entre o poeta e o artesão tinha uma pedra no meio do caminho, uma vez que, se o segundo buscava a perfeição e a cópia fiel de uma realidade, o primeiro deveria tem como meta a criação de um mundo cheio de significados.
No meio do caminho tinha uma pedra é um verso que se repete circularmente, como as situações da vida: más e boas. Já foi dito que se os versos iniciais formam um crescendo de intensidade, os finais retrocedem, num minuendo (o oitavo repete o terceiro; o nono, o segundo; o décimo, o primeiro), sugerindo ritmicamente o eco, a lembrança da luta que volta a seu lugar na memória.
Ora, vida é um círculo contínuo e os acontecimentos são marcados na memória: das retinas tão fatigadas. Memória é a capacidade de voltar no tempo. O vocábulo repetir vem do latim repetitione e deriva, segundo a etimologia, do verbo latino petere, que significa procurar, e buscar de novo, procurar uma vez mais, esforçar-se por alcançar de novo.
Affonso Romano de Sant’Anna analisando a obra de Drummond escreve que memória é re-sentir. O ato de repetir é basicamente uma atitude contra o tempo, necessidade de fixar a essência do que passou e reexperimentar sensações do prazer antigo diante do desconforto do tempo presente. (Op. Cit Sant’Anna, A. R. (1980) p. 201). Memória é a tentativa de reviver um momento, recordar os acontecimentos que de alguma forma marcaram nossa vida. Heidegger assinala que: “Investigar: o que há com o Ser? – não significa nada menos do que re-petir o princípio de nossa existência espiritual-Histórica, a fim de transformá-lo em um outro princípio […] Um princípio, porém, não se re-pete, voltando para ele como algo de outros tempos e hoje já conhecido, que meramente se deve imitar. Um princípio se re-pete, deixando-se que ele principie de novo, de modo originário, com tudo o que um verdadeiro princípio traz consigo de estranho, obscuro e incerto”. (Heidegger, A. R. 1987, p. 65).
Recordar é a reiteração desejada de momentos importantes da existência. Alguns críticos estudaram a repetição drummondiana, entre eles Antônio Houaiss e Emanuel Moraes e, de forma singular, Gilberto Mendonça Teles, com a sua obra Drummond a Estilística da Repetição. Nesta obra, o poeta-crítico assinala que a repetição é uma constante na poética do criador de “No Meio do Caminho” e se verifica tanto na estrutura formal (versos, rimas etc.), quanto nos mínimos fonemas. Gilberto Mendonça Teles defende que a repetição parece originar-se dessa ânsia de superação do indizível. (Teles, G. M. 1976, p. 35).
“No meio do caminho” apesar de ser um retrato irônico e antilírico da vida, demonstra uma verossimilhança que sangra a realidade com suas pedras sonoras e, por meio de metáforas, diz o indizível e desperta o homem para sua humanidade adormecida.
Se o poema tem uma tonalidade avessa, torta, gauche, meio caótica e repetitiva, tem os tons da vida, que nem sempre são claros, coloridos e belos. “No Meio do Caminho” traduz os sentimentos do mundo que o poeta posteriormente vai falar através da misteriosa voz de seus poemas, porque como definiu Otávio Paz em O Arco e a Lira a criação poética é um mistério porque consiste em falar dos deuses pela boca humana. (Paz, O. 1982 p. 196).
- Suplemento
Esta Antologia Poética é finalizada com a seção denominada “Suplemento” composto por 15 poemas que trazem lições de vida e de coisas. Nesses textos Carlos Drummond de Andrade retoma elementos de sua poética como as raízes de seu ser, a própria história, as contradições do amor, o estar no mundo e até mesmo as questões sociais como a paz, como no poema “Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz” (CDA Idem p. 368).
O poema “O Relógio” (CDA Idem p. 344) marca as batidas da poética deste poeta maior que, com ironia e lirismo, expõe sua visão crítica do homem e sua inquietação diante da vida: Nenhum igual àquele. / A hora no bolso do colete é furtiva, / a hora na parede da sala é calma, / a hora na incidência da luz é silenciosa. / Mas a hora no relógio da Matriz é grave / como a consciência / E repete. Repete.
Nesta Antologia, o autor – privilegiado autor leitor de sua obra – apresentou-nos aqueles poemas que ele considerar os principais núcleos de sua poesia e, como afirmou, “algumas caberiam talvez em outra seção que não a escolhida, ou em mais de uma. A razão da escolha está na tônica da composição, ou no engano do autor”. (Op. cit Andrade C. D. (2001) p. 17). O certo é que Drummond conduz o leitor numa viagem cujo destino é, sem dúvida, o maior conhecimento do perfil da obra de um dos maiores poetas da Língua Portuguesa.
- CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – POESIA EIS A RAZÃO DE TUDO.
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, a 31 de outubro de 1902, filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e D. Julieta Augusta Drummond de Andrade.
Fez os estudos primários em Itabira e secundários em Belo Horizonte e Nova Friburgo. Aos 13 anos de idade já pertencia ao Grêmio Dramático e Literário Artur Azevedo, de sua Cidade natal, e aí pronunciou uma conferência. Suas tendências literárias aparecem cedo, já no Grupo Escolar Coronel José Batista, onde esteve inicialmente.
Ainda adolescente, começou a colaborar em jornais e revistas de Belo Horizonte e do Rio. Em 1916 matriculou-se no Colégio Arnaldo, de Belo Horizonte, onde conheceu Gustavo Capanema e Afonso Arinos, que continuariam a ser, pela vida afora, dois de seus grandes amigos.
Em 1925, funda, com Martins de Almeida e Emílio Moura, A Revista que desde o primeiro número se tornou órgão representativo do Modernismo em Minas Gerais.
Nesse mesmo ano, o poeta casa-se com dona Dolores Dutra de Morais e conclui o curso de Farmácia. Contudo, desinteressado da profissão de farmacêutico, inadaptado à vida de fazendeiro, leciona português e Geografia no Ginásio Sul-Americano de Itabira.
Mas não é ainda a carreira do magistério que o atrai. Por iniciativa de Alberto Campos, Drummond volta a Belo Horizonte, para ocupar o cargo de redator e, logo em seguida, o de redator-chefe do Diário de Minas. Itabira se tornaria, agora, apenas lembrança… uma fotografia na parede. / Mas como dói!
Vive, então, a alegria da paternidade misturada à dor. Seu primeiro filho, Carlos Flávio, morre momentos após o nascimento, levando o poeta a assinalar anos depois: Interrogo meu filho, / objeto de ar: / em que gruta ou concha / quedas abstratas?
Em 1928, nasce sua filha, Maria Julieta; é ainda neste mesmo ano que o poeta se torna “pedra de escândalo”, quando a Revista Antropofágica, de São Paulo, publica, em julho, seu poema “No Meio do Caminho”. Diz o cronista, falando do poeta: (…) sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais (…)
A partir de l930, com alguma poesia, o poeta mineiro inicia a publicação de uma das maiores Obras Poéticas da Literatura Brasileira, em extensão e labor artístico. Publicou acerca de vinte e oito livros de poemas em vida e uma obra póstuma. Além de poeta, Drummond foi admirável prosador (contista). Entre 1944, com a publicação de Confissões de Minas, até 1987 com Moça Deitada na Grama, lança dezesseis livros de crônicas, além de duas obras de literatura infantil, uma charge brasileira intitulada O Pipoqueiro da Esquina (1981) em parceria com Ziraldo. (Andrade, Carlos Drummond de; Pinto, Ziraldo Alves – O Pipoqueiro da esquina. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. 111 pp. Brochura conservada, charges brasileiras; ilustrações do Ziraldo.)
Entre 1979 e 1981, Carlos Drummond de Andrade publicou em sua coluna no caderno B do Jornal do Brasil as famosas “pipocas”, nome que dera a seus chistes, frases-relâmpagos cheias de humor que retratavam criticamente o país. Admirador e amigo de Drummond, o artista, escritor e jornalista Ziraldo percebeu que as sátiras das “pipocas” à vida brasileira eram potencialmente charges – faltavam apenas os desenhos que se associassem às palavras. Ziraldo disse isso ao poeta, que, entusiasta do trabalho de seu conterrâneo, concordou com o convite que se seguiu: juntassem palavra e traço. Surgiria, a seguir, “O pipoqueiro da esquina”, publicado pela Codecri em 1981, livro no qual várias “pipocas” ou chistes retratam um país sempre desconcertante e desconcertado. O que reitera a atualidade de Drummond. Os chistes e as ilustrações das charges de Ziraldo expressam o Brasil do agora. Assim comprova a visão aristotélica sobre o historiador e o poeta em Poética, quando prescreveu que a poesia (arte) é superior à história porque é mais filosófica, mais séria e mais universal, pois o artista atribui a um indivíduo de determinada natureza pensamento e ações, por liame, e transfigura realidades. O historiador, ao escrever a história de uma pessoa, narra sua vida em particular e de acordo com a conveniência (Aristóteles, 1987, p.209). O artista é um filósofo-criador.
Assim, Aristóteles define que a diferença entre Heródoto e Homero é que o historiador conta os fatos que sucederam e o poeta narra os fatos que poderiam acontecer. Portanto, o artista da palavra é mais filosófico e mais sério do que o cientista, uma vez que o texto do poeta se refere ao universal, (dotando às suas personagens naturezas, pensamentos e ações a um liame de necessidade e verossimilhança) e o historiador narra fatos particulares, acontecidos, que são registrados a partir da versão teórica – científica do cronista da história de um povo.
A narrativa do poeta (do artista da palavra) funciona como um “ritual” ou a imitação da ação humana como um todo, e não simplesmente como uma mímesis praxeosou imitação de uma ação, traduz um mito. Assim, o conceito de mito advém de sua relação originária com o enredo da narrativa (mythos), extraído dos componentes da poesia codificada por Aristóteles, ligado ao sentido primitivo de “trama” e que passou a significar crescentemente “narração”, acompanhando uma propensão da narrativa de passar de uma “ênfase ficcional” primitiva para uma tendência “temática” posterior.
Diferente do sentido comum e sobrenatural: uma tendência para narrar uma estória que é originalmente uma estória a respeito de personagens que podem fazer qualquer coisa (Ricouer, (1994, p.80).
Assim reitero que, como já afirmei anteriormente, literatura, portanto, é ficção – palavra latina que significa “fazer”, “moldar” e ainda “fingir”, “imaginar”, portanto, é criação e enigma. Por isso, o texto artístico traz em si o enigma da Esfinge, “decifra-me ou te devoro”. Além do caráter enigmático, a arte literária é em si um paradoxo, uma vez que mesmo fazendo referência a alguma realidade é, antes de tudo, criação e não quer expressar necessariamente nenhum mundo preexistente. No entanto, a arte de Drummond é eterna porque é sugestão e ao mesmo tempo transfigura o real, sua poesia é plural, pois que expressa uma realidade do passado, do presente, do agora e do futuro com arte, humor e antes, de tudo, poesia.
A importância de sua obra completa de Drummond pode ser avaliada pelas palavras de Otto Maria Carpeaux, na Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, Editora Letras e Artes, 1964, p. 298:
“A bibliografia sobre Carlos Drummond de Andrade é muito numerosa. Nenhum outro poeta moderno provocou discussão tão apaixonada, seja dos admiradores que lhe interpretam de maneira diferente a poesia, seja dos ‘conservadores’ que o escolheram como alvo de ataques: discussões que não passam de sintomas da forte influência exercida pela originalidade e personalidade do poeta, hoje quase geralmente reconhecido como o maior do Brasil”. (CARPEAUX, O. M., 1964, p. 298)
No dia 17 de agosto de 1987, dois meses antes do aniversário de 85 anos, por insuficiência cardiorrespiratória, morre o Poeta Maior Carlos Drummond de Andrade. Todavia, o seu coração maior que o mundo continua a bater através da sua divina obra que é eterna e sempre traduz uma novidade que permanece novidade: na tendência, no material, no procedimento, nas temáticas, nas lições das coisas da vida e, principalmente, na arte poética deste poeta de alma e ofício.
Profa. Dra. Maria de Fátima Gonçalves Lima é autora de 40 obras, ensaísta, crítica literária, escritora de obras da literatura infanto-juvenil, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras – Literatura e Crítica Literária – Mestrado e Doutorado da PUC Goiás e Titular da Cadeira nº 5 da Academia Goiana de Letras (AGL
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