Fabrício Cardoso pede demissão do cargo de editor-executivo de O Popular. “Por amor”
O jornalista afirma, numa carta divulgada no Facebook, que está indo embora por amor a uma mulher, Mônica
Durante sete anos, Fabrício Cardoso foi editor-executivo do jornal “O Popular”. Nesta semana, ele pediu demissão. Numa bela carta, na qual fala de seu amor por Goiás — e não cita nenhum colega de redação —, o jornalista afirma que está indo embora de Goiás pelo amor de uma mulher, Mônica.
Goiás, de acordo com a carta, o “adotou”. “Meu filho se goianizou a ponto de nem cogitar vir com o pai”, diz Fabrício Cardoso. “Jamais fui tão bem tratado.”
Leia a carta do jornalista Fabrício Cardoso
Vou sentir a falta dos teus janeiros
Fazia 39 graus à sombra, nesse caso da fuselagem do avião. Se suei, não restou vestígio. Tudo evaporava no trajeto a pé até o ar condicionado redentor, já no desembarque do antigo Santa Genoveva. No táxi, grogue de tanta secura, desfaleci com a cabeça apoiada na janela. Ainda mandei mensagem para minha mina, advertindo para a imprudência de repetirmos a insanidade do colonizador, fixando residência num lugar que seria fervente, não fosse a falta de umidade.
Cheguei aqui na firma massacrado pela primeira hora sacolejando por Goiânia. Estava drenado, carente de fluídos corporais, e com as mucosas torturadas pelo ar do Cerrado daquele junho de 2015. Não era a condição física e mental mais aconselhável para uma entrevista de emprego, devo admitir.
Creio porém ter disfarçado com sucesso a miséria do instante seminal de minha vida goiana. Não só fui aceito para o trabalho como, mais de sete anos depois, parto com o pé rachado, deixando literalmente uma parte de mim. Meu filho se goianizou a ponto de nem cogitar vir com o pai. Verá ainda muito sol sumir num horizonte multicolorido, no que lhe invejo.
A despedida hoje me custa porque, dissipadas as maldades climáticas, Goiás foi aos poucos me revelando grandezas. Foi no salgado que, apesar de parecer um vinil de 78 rotações, é chamado modestamente de disquin. Nos prédios roçando 50 andares, que brotam como soja. Nas tropas, boiadas, ermos, gerais e platiplantos da prosa. No cimento do Serra Dourada, onde ecoaram peleias épicas do meu clubezinho, o Xavante. Na potência da xícara matinal de Rancheiro, cuja dificuldade em encontrar à venda noutros pagos já me atormenta profundamente.
Em termos de dimensões, porém, nada se compara ao carinho do povo desta terra. Sou meio cigano, já morei em tanta casa que nem lembro mais e vos digo: jamais fui tão bem tratado. Tive respeito automático e depois integral, mesmo quando, por fraquezas, submergi em momentos que me encolhiam como pessoa. Voltei à superfície por mãos estendidas, aos montes. A porta da sala nunca fechou.
Do computador onde escrevo esse texto, com intervalos para me recompor da corrosão no peito, vivi coisas que me robusteceram como jornalista. Foram tempos convulsos. A nação engoliu uma bola de pelo, engasgou e ainda está aí, tentando cuspir. Só posso atribuir à sorte o fato de ter documentado o delírio nacional numa redação tão bonita quanto essa.
E o que dizer dos janeiros do Cerrado? Quando o planeta inteiro ou arde no calor ou tirita no gelo, aqui é como se toda a filosofia do mundo pudesse ser formulada sob tardes cinzas e amenas. Não se trata de um clima gentil apenas aos nascidos num subtrópico ao fim do Brasil, como eu. Os janeiros são a expressão meteorológica da hospitalidade goiana. São confortavelmente universais.
Por que parto, então? Bem, naquela primeira seca, alertei minha mina sobre as maldades climáticas; ela levou a sério. Estamos vivendo longe um do outro desde então. Com quase meio século às costas, considero tolice qualquer minuto sem a companhia de quem te rejuvenesce e te faz rir, simplesmente existindo do jeito que é. E tudo reluz feito um entardecer de Cavalcante quando penso em ti, Mônica.
Deixo Goiás por amor e isso me faz imaginar que posso ser perdoado por partir sem ter devolvido nem sequer uma fração do tanto que recebi.